No ano com mais mortes no último século, a maioria das funerárias não faturou mais. Porquê?
07-01-2021 - 07:50
 • João Carlos Malta

Em 2020, morreram mais 11.874 pessoas do que no ano anterior, num total de mais de 123 mil portugueses. Com o aumento dos óbitos, e a Covid-19, as agências funerárias tiveram de se adaptar a um novo mundo. Mais funerais não significou mais dinheiro em caixa, e a ANEL (associação do setor) fala de perdas médias entre os 20 e os 30%.

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O ano de 2020 foi negativo de muitas formas e feitios, e também no que concerne às mortes o cenário foi muito negro. Portugal já não registava tantos mortos num ano desde 1920, quando faleceram 144 mil pessoas, segundo os dados do INE. A pandemia foi um desafio para as agências funerárias que, desde a primeira hora, tiveram de saber adaptar-se. Houve mais trabalho, mais cerimónias lúgubres, mas isso não se traduziu em maiores proveitos.

O presidente da Associação Nacional de Empresas Lutuosas (ANEL), Carlos Almeida, relata à Renascença que não foi o maior volume de óbitos que motivou mudanças nas empresas. A responsável pelas mudanças tem um nome: Covid-19.

A pandemia teve um impacto na reorganiação das cerimónias que se fizeram de forma muito diferente da que os portugueses estão habituados. Esse foi o grande impacto”, diz Carlos Almeida, sem hesitar, sobre um ano em que morreram 123.667 portugueses. A Covid-19 começou a matar em março do ano que terminou.


NÚMERO DE MORTOS DIÁRIOS DE COVID-19

Ainda que o maior número de funerais pudesse indiciar um ano de maior faturação das empresas do setor, Carlos Almeida fala de outras alterações que levaram a que isso não sucedesse para a maioria das agências funerárias.

Há um conjunto de serviços que não são prestados, porque organizar um funeral que sai do hospital e vai para o cemitério tem menos encargos do que um que passe pela igreja, e em que se tiverem de fazer as exéquias fúnebres”, explica o líder da ANEL.

Tudo somado, contabiliza que os rendimentos das funerárias baixaram, em média, “entre 20% e 30%”. Em Portugal, os valores cobrados pelos funerais variam entre os 1.600 e os 2.200 euros.

Regresso ao básico

Também Vítor Teixeira, presidente da Associação dos Agentes Funerários de Portugal (AAFP), anui que “foi um ano de maior volume de funerais”, mas que mais quantidade “não quer dizer mais faturação”.

A explicação está nas características da Covid-19, em que o vírus retirou a possibilidade de realização de velórios, obrigou a funerais mais simples, e a menos exposição das urnas. “Houve retração nas flores, e tudo isso contribuiu para que a faturação diminuísse. Não houve tanta utilização de elementos supérfluos ao funeral”, enumera Vítor Teixeira.

Em conclusão, “houve mais óbitos, mas o custo médio diminuiu”.

Apesar dos quase 12 mil óbitos a mais que se registaram em 2020, em comparação com o ano anterior, o que equivale a um crescimento de 10% em termos anuais, o líder da ANEL considera que o crescimento de óbitos “não teve expressão, nem impacto”, e que “não houve funerais por realizar”. “A capacidade das funerárias está muito longe de esgotar”, conclui.

O mesmo responsável avança que há 1.300 agências funerárias espalhadas pelo país. “Todas as funerárias trabalharam um pouco mais, não tenho relatos de congestionamento”, sinaliza Vítor Teixeira, da AAFP.

Em todo o mundo, a pandemia já fez quase dois milhões de vítimas mortais.

Início sem regras e turbulento

Carlos Almeida diz que, ainda assim, o ano que acabou foi complicado para quem desempenha esta atividade. Desde logo, porque também estiveram na linha da frente no embate que a pandemia causou na sociedade.

O presidente da ANEL queixa-se de, no início, não existirem regras específicas, e garante que tiveram de ser as associações, “por estudo do que se passava nos outros países, e toda a orientação que fomos bebendo de outras direções-gerais ou outros ministérios europeus, que organizou um plano de contingência que veio de certo modo regular as várias fases que atravessámos de março a maio”.

O mesmo considera que o processo não foi isento de turbulência, garantindo que houve alguns “focos de derrapagem no país, onde as famílias vivem de forma mais intensa os funerais”. “Nos meios urbanos foi mais fácil de implementar do que nos meios rurais”, concretiza.

Por isso, e porque muitos não abdicaram das celebrações tradicionais, “houve ‘report’ de contaminações devido a funerais”. “Não foi fácil gerir tudo isto, tivemos uma perspetiva pedagógica para dar os melhores conselhos na ausência de informação mais concisa e precisa de uma autoridade pública”, lamenta.

Caixões com viseira

O coronavírus trouxe muitas várias mudanças na forma como os funerais se realizaram, uma delas foi o tipo de urnas que as famílias escolhiam. Como o caixão não podia ser aberto, a opção passou a ser por modelos que possuíssem um visor.


NÚMERO DE MORTES POR GRUPOS ETÁRIOS EM PORTUGAL

“Fizémos uma ‘task-force’ com as fábricas para alinharem a produção para um modelo que fosse ecológico, porque estamos a falar de cadáveres que podem ser cremados”, relembra.

Isso mesmo confirma Manuel Marinho, fabricante de urnas de Amarante. Foram esses os artigos que mais vendeu, e que antes raramente eram pedidos pelas agências funerárias. E revela também que a grande mudança no número de falecimentos começou depois do meio do ano.

“O aumento que houve foi de julho para cá, porque até aí vinha normal. A partir dessa altura é que começaram a subir os outros óbitos, não só os Covid”, relembra. O empresário diz que nos últimos seis meses do ano teve um incremento de 80 mil euros de faturação.

Mais a sul, na freguesia da Brandoa na Amadora, a Funerária Central de Benfica, liderada pelos irmãos Andrade, contabiliza o aumento do número de mortes em 30 a 40% em relação aos anos anteriores. É um caso que contraria os cálculos da ANEL, uma vez que o maior número de funerais deu um acréscimo de rentabilidade na ordem dos 20%.

Paulo Andrade conta que mantiveram o preço médio das cerimónias fúnebres no mesmo valor, entre 1.600 e 1.700 euros. “Foram necessárias mais pessoas, mais fatos e óculos. Muita rotatividade de material. Mas não aumentamos o valor, como há poupança do valor de igreja e de serviços religiosos, fizemos uns ajustes para que não fosse tão pesado para as famílias tendo em conta o momento difícil em que estamos”.

Sem diferença entre Covid e não Covid

O agente funerário fala de situações complicadas, em que explicar às famílias as novas regras ditadas pela DGS não era tarefa fácil. “Há agora pouca dignidade num funeral. O português está habituado a ver o corpo, a tocar no corpo. Neste momento, nada disto é possível porque é tudo altamente perigoso para a saúde pública”, lembra.

Isso mesmo reforça Carlos Almeida, da ANEL, que garante que ainda agora cerca de 80% dos cadáveres que estão nos centros hospitalares "não é permitida a sua preparação”.

O mesmo enfatiza que “morrem lá pessoas que não estão com Covid-19, e têm o mesmo tratamento”. E defende que “se somos triados na admissão enquanto doentes, essa triagem devia continuar até à casa mortuária”.

Na opinião do dirigente associativo, isso não sucede por “haver edifícios mal estruturados, edifícios sem espaço, mas com o esforço de todos e das organizações hospitalares podia-se fazer bastante melhor”.

No Algarve, José Nogueira Júnior, um brasileiro radicado em Portugal há muitas décadas, trabalha neste ramo desde os 15 anos. E é por isso um homem com muitos conhecidos neste meio, o que o levou a lançar há dois anos uma página no Facebook intitulada “Cangalheiros”, na qual os profissionais do setor trocam ideias. Na altura da pandemia, a interação aumentou porque muitos quiseram perceber como manuseariam o corpo, ou preparariam um cadáver.

Mas pelo menos na agência em Portimão em que trabalha, e outros locais que conhece, garante que a adaptação foi rápida. “Material nunca faltou, porque nós estamos habituados a trabalhar com doenças contagiosas, já tínhamos os equipamentos”, explica.

“Nos certificados de óbito que havia antigamente, vinha a causa de morte, neste momento não vem, só vem uma guia de transporte. Por isso, para nós como prática, todo o cadáver para nós é uma ameaça biológica”, resume.

Futuro digital?

As regras apertadas da DGS no que concerne ao número de pessoas que podem assistir a funerais, mas também os constrangimentos de deslocações, de confinamentos e até mesmo infeções pela Covid-19, fez com que muitas das cerimónias tivessem de ser assistidas à distância. Os meios tecnológicos com as redes sociais à cabeça foram um recurso muito importante para algumas famílias.

As funerárias em Portugal são, regra geral, empresas familiares, ainda assim o presidente da AAFP, Vítor Teixeira, diz que “a maioria está bem preparada, mesmo do ponto de vista tecnológica, com exceção das que estão na província”.

No entanto, o mesmo líder associativo, que também gere uma agência em Matosinhos que vai na terceira geração familiar, assinala que o que assiste comummente é que “nos funerais as pessoas não estão abertas a introdução de meios tecnológicos”.

“Podemos fazer transmissões, mas rara foi a família que o pediu. As tendências são de funerais mais recatados, mais íntimos, e se calhar é a marca que vai deixar quando a pandemia se diluir”, remata.