Dispara venda de lojas como casas sem licença. "Estão a ser cometidas ilegalidades"
02-04-2019 - 07:01
 • Joana Bourgard

Dezenas de lojas, ateliês ou garagens estão a ser transformados em casas e postos à venda sem licença de habitação em Lisboa. Especialistas concordam que quem participa nestes negócios "está a pactuar com ilegalidades". Câmara diz que maioria dos casos se destina a alojamento local nas zonas históricas e garante que “atua em conformidade”.

Com uma simples pesquisa nos principais sites do mercado imobiliário, é possível encontrar dezenas de espaços à venda como casas que não têm licença de habitação. Basta escrever “casa com afetação a comércio” para encontrar imóveis totalmente remodelados para habitação e com valores abaixo do preço de mercado.

Um apartamento em Marvila, em Lisboa, por exemplo, está à venda como uma “oportunidade de criar o seu próprio espaço para viver” e custa 125 mil euros. Um T1 em Benfica, que é apresentado como um “excelente investimento para habitação própria ou para o mercado de arrendamento”, está à venda por 89 mil euros. Por um T0 no bairro da Graça, ainda na capital, com “excelente localização para alojamento local ou para aluguer normal”, são pedidos 130 mil euros.

A Renascença contactou os promotores de dezenas destes anúncios, que confirmaram as circunstâncias em que estão a ser vendidos os espaços.

Um dos agentes imobiliários desvaloriza o facto de a casa que está a vender não ter licença: diz que o processo é moroso, motivo pelo qual o proprietário pede um valor baixo pelo imóvel, e contrapõe que “basta colocar o processo na Câmara”.

Outro anunciante recorre à falta de licença de habitação como um argumento a favor da venda: “Se um dia quiser abrir um restaurante, já tem a licença [de comércio]”.

Contudo, o que é garantido como alcançável, como algo que não traz problemas para o proprietário, pode revelar-se uma dor de cabeça de burocracias que, no limite, termina com multas e até com um despejo administrativo.

A transformação de uma fração comercial para habitação requer vários procedimentos que podem variar de acordo com o imóvel. Tudo começa pelo condomínio, que tem de aprovar por unanimidade a alteração de utilização de comércio para habitação. Supondo que a barreira do condomínio foi ultrapassada, é depois necessário seguir uma série de procedimentos, nomeadamente:

- Obter uma licença para obras de adaptação

- Pode também ser necessária obter uma licença prévia ou autorização camarária para serem realizadas as obras

- Fazer um pedido de autorização junto da Câmara Municipal, sem o qual não poderá ser emitida a licença de utilização para habitação

- Inspeção oficial ao local por um técnico qualificado para emissão de um parecer

- Realizar uma reavaliação do imóvel por motivo de impostos

- Pedir o averbamento na Conservatória do Registo Predial, com a nova descrição do imóvel

- Solicitar mudança e recalibração dos contadores de água, luz e gás em relação ao uso doméstico e habitacional, que apenas se podem mudar já com a licença de habitabilidade emitida

Especialistas destacam "ilegalidades"

Os imóveis, estando à venda já totalmente remodelados para habitação, são casos ilegais porque não é possível fazer obras para lhe alterar o uso sem haver uma autorização para a alteração do uso”, explica a advogada Ana Sofia Gomes à Renascença.

Luís Lima, presidente do Portal dos Profissionais e Empresas de Mediação Imobiliária de Portugal (APEMIP), partilha a opinião da advogada: “Quando se vende uma habitação, tem de se vender com a respetiva licença de habitação. Nesse caso, não havendo licença, está a pactuar-se com uma ilegalidade.”

De forma a ser feita a legalização da casa, todos os condóminos têm também de aceitar, por unanimidade, a alteração da fachada, que é uma parte comum a todos os proprietários.

E se tudo correr mal e o comprador não conseguir legalizar o seu imóvel, quem é responsabilizado? De acordo com Ana Sofia Gomes, a questão é um “pau de dois bicos”.

Um comprador pode, de facto, desconhecer os procedimentos e ser levado a acreditar que a mudança de afetação é um procedimento simples. Contudo, durante a assinatura da escritura, os envolvidos são informados do fim a que se destina a fração do imóvel, pelo que o comprador não pode alegar desconhecimento, existindo a possibilidade de querer fazer uma compra com condições económicas mais vantajosas.

No entanto, se o comprador não conseguir licença de habitação, é duplamente penalizado: fica com uma casa com obras ilegais e sujeita-se a um despejo administrativo.

“Nenhuma construção pode ser utilizada sem a devida autorização de utilização, sob pena de o presidente da Câmara ordenar a cessação do uso do imóvel mesmo que a pessoa seja proprietária. Se a pessoa não acatar a ordem, pode proceder-se ao despejo administrativo”, alerta a advogada.

No caso de o imóvel ter sofrido obras de transformação sem o respetivo alvará de licenciamento, o proprietário pode ser punido com uma coima de entre 500 e 200 mil euros. No caso de serem obras em desconformidade com o projeto ou com as condições do licenciamento, a pessoa pode pagar uma multa que vai dos 1.500 aos 200 mil euros.

Ana Sofia Gomes e Luís Lima concordam que os agentes imobiliários devem ser responsabilizados por estarem a vender imóveis em desconformidade, com obras ilegais. “As regras do mercado definem que nós, imobiliárias, quando vendemos um ativo temos de nos certificar de que não tem ónus e encargos, que está devidamente legalizado e não se pode sequer comercializar uma coisa que não tem a devida legalização”, considera o presidente da associação que representa os agentes imobiliários.

Luís Lima sabia de alguns casos de venda de lojas com a finalidade de serem habitadas, mas pensava que seriam casos pontuais. Confrontado pela Renascença com as dezenas de anúncios disponibilizados online, admite ser “um fenómeno maior do que pensava” e acredita que a Câmara de Lisboa, quando souber da dimensão desta oferta e procura, vai agir.

“Há uns anos, o mercado não habitacional era mais importante, mas agora as coisas inverteram-se e as pessoas estão a encontrar escapatórias", explica Luís Lima. "Nos centros das cidades há muitos prédios que eram serviços e agora estão alterados para habitação.”

Pela quantidade de anúncios publicados online, a venda de lojas para habitação pode parecer uma tendência, mas as dificuldades que estas aquisições acarretam justificarão o facto de não ter sido registado ainda um grande crescimento.

Para além de toda a burocracia que dificulta a legalização de espaços não-habitacionais, os bancos não fazem crédito à habitação para este tipo de imóveis. Também não é possível comprar nem arrendar sem licença de habitabilidade, sendo que o proprietário corre o risco de pagar uma multa equivalente a 12 meses de renda.

No fim, se o comprador se quiser livrar do pesadelo e tentar vender a casa, estará também ele a cometer a ilegalidade de vender uma casa com obras ilegais e sem licença de habitação.

Um vazio de fiscalização

A Câmara Municipal de Lisboa é a entidade responsável por tratar de todos os pedidos de alteração do uso de propriedade e pela gestão de todos os pedidos de licenças.

Questionada pela Renascença sobre estas situações irregulares, de casas em que haja alteração do uso sem licença, a autarquia diz que “atua em conformidade” e que “as frações só podem ser utilizadas para o uso para o qual foram licenciadas”

Sobre o aumento de pedidos de alteração de uso de propriedades, a Câmara lamenta: “O sistema informático GESTURBE atualmente utilizado não fornece esta informação.”

Mesmo sem a ajuda do GESTURBE, é um dado público que, nos últimos cinco anos, as alterações de propriedade horizontal quase duplicaram. De acordo com o Ministério da Justiça, em 2018, em Lisboa, houve 188 alterações de afetação de comércio para habitação, mais 88 do que em 2014.

Face a isto, a Câmara de Lisboa reconhece que “a maioria dos espaços que os proprietários pretendem reconverter destina-se a alojamento local e maioritariamente nas zonas históricas”, mas os pedidos de alteração para habitação estendem-se a toda a cidade.

O comércio “é um elemento essencial de vitalidade das cidades” e “a cidade não se faz apenas de habitação mas sim de uma mistura de funções”, sublinha a autarquia.

Como solução para a falta de habitação na cidade de Lisboa, com valores razoáveis para os ordenados portugueses, a Câmara destaca a promoção de programas para “jovens e para a classe média” que passam por “novas políticas públicas de habitação” e por “programas de promoção pública ou em associação com promotores privados”.

Questionada sobre o tempo que demora o processo de alteração do uso da propriedade, a Câmara diz que “depende da situação em concreto e do tipo de obras necessárias”. Alerta, contudo, que em qualquer caso é sempre necessária a “submissão de um pedido de alteração de utilização, nos termos do Regime Jurídico de Urbanização e Edificação”.