Em 1991, o Estrela Vermelha entrou no relvado do Stadio San Nicola, em Bari, para deixar caídos os queixos daqueles que iam testemunhar mais uma final da Taça dos Campeões Europeus. O Marselha de Carlos Mozer, Abedi Pelé, Chris Waddle e Jean-Pierre Papin teriam pela frente gente como Dejan Savicevic, Robert Prosinecki, Darko Pancev e Sinisa Mihajlovic.
No banco dos jugoslavos, como guarda-redes suplente, estava Milic Jovanovic, um homem que depois desse feito enorme na Europa voou para o Montenegro duas temporadas e a seguir, finalmente, para Torres Vedras, para o Torreense. A guerra que desfragmentou a Jugoslávia assim o ditou, tomar decisões era necessário.
Do Torrense, na Segunda Divisão, saltou para o Nacional da Madeira. Rodolfo Reis apreciou o que viu naquele guarda-redes e levou-o para o Leça, em 1996. Por ali jogou cinco anos até que pendurou as luvas e aceitou ser treinador de guarda-redes. Em 2024, com 58 anos, ainda é ele o homem nesse ofício, um funcionário apaixonado que vai ajudando a reerguer este clube, agora nos campeonatos nacionais, líder da Série B do Campeonato de Portugal.
Em entrevista a Bola Branca, Jovanovic, natural de Krusevac, conta que Estrela Vermelha estará diante do Benfica, na quinta-feira, em Belgrado, e quão importante é a dedicação dos adeptos que torna mais esmagador a travessia do famoso túnel, por baixo da bancada. O antigo guarda-redes revela também porque veio para Portugal, porque ficou e porque nunca sairá de Leça da Palmeira.
Como é o ambiente naquele estádio?
Ora bem, o Benfica jogou lá em 1971, quando foi inaugurada a iluminação no estádio. Na altura estavam lá 100 mil pessoas, algo que já não é possível hoje, porque foram instaladas as cadeiras. Vão estar lá 60 mil, dos quais 25 ou 30 mil apoiam a equipa durante os 90 minutos.
Toda a gente sabe do tal conhecido túnel, que não é como no meu tempo, era normal. Agora, com regras da UEFA, está com mais isolamento. O Benfica tem de passar pelo túnel e passa por baixo da bancada dos adeptos a gritar e a saltar constantemente. Aquele barulho ouve-se quase no centro da cidade. Vai ser um ambiente um bocadinho assustador, mas um jogador profissional não pode ligar a isso.
O Estrela Vermelha aproveita o empurrão do público para a equipa se superar em casa?
Bastante, bastante. Os adeptos apoiam a equipa quando está a perder ou a ganhar, ou quando o jogo está empatado. Quando marcam, aquilo entra em loucura total, há fumos por todo o lado, barulho, barulho, apoio. A equipa, aí, começa a evoluir ainda mais.
Ainda acompanha essa equipa? O que nos pode dizer sobre o Estrela Vermelha atual?
Acompanho, falo com os meus amigos, ex-colegas. Este ano, a equipa tem um bom plantel. Vejo os jogos na televisão. Em casa, está muito, muito superior a todos. Nota-se uma diferença enorme entre os jogos em casa e fora. O plantel é muito forte, tem bons estrangeiros, bons avançados, tem o capitão , que já está com certa idade mas que quando entra faz diferença. O guarda-redes, o israelita está lesionado, mas joga um sérvio jovem que é o futuro do Estrela Vermelha. A defesa é compacta. Eu acho que não há favoritos, vai ser um bom jogo, de certeza.
Jovanovic, viveu de perto um dos momentos mais altos da história do Estrela Vermelha, em 1991. Como foi estar naquela final da Taça dos Campeões Europeus?
Tínhamos um plantel fabuloso, fabuloso. Eram autênticos craques e os portugueses conhecem muito bem aquela equipa, Savicevic, Prosinecki, Pancev, o falecido Mihajlovic, o romeno Belodedici, aquilo era uma equipa fabulosa. Nós passeávamos no antigo campeonato da Jugoslávia. Dávamos cinco, seis fora. Em casa, dava para gerir plantel.
Quando chegou a final, jogámos contra o Marselha, um bocadinho assustados. Não entrámos tão bem, não aparecemos durante o jogo. Foi um empate, os penáltis podiam dar para nós, podia dar para eles, graças a Deus foi o nosso guarda-redes que defendeu o primeiro e marcámos todos. Estavam uns 30 mil adeptos do Estrela Vermelha na bancada, apoiaram durante o jogo todo. Isso conta muito. É o que vai acontecer na quinta-feira, em Belgrado.
Acaba por ser um confronto entre duas equipas que viveram essas conquistas e que hoje estão afastadas pela luta desde título.
Ora bem, não vamos dizer que o Benfica está afastado. É um clube enorme. Agora, o Estrela Vermelha passou aqueles períodos da crise geral, naquela guerra na antiga Jugoslávia, agora está aparecer novamente. No ano passado entrou diretamente para a fase de grupos, este ano não, por causa dos pontos da UEFA. O Estrela Vermelha vai fazer o seu papel, tentar chegar o mais longe possível. Ganhar a Liga dos Campeões está fora de questão. Do Benfica podemos esperar tudo, uma equipa com um investimento destes tem a obrigação de chegar longe. Não vai ser fácil contra equipas de Espanha, Inglaterra e Itália, mas a bola é redonda, no futebol tudo é possível.
Está nessa final e pouco depois vem para Portugal. Como é que se dá essa vinda para o Torreense?
Tive sorte em escolher Portugal. Adoro estar cá, não escondo, digo a toda a gente, na Sérvia e aqui. Vim do Estrela Vermelha, de um clube enorme, de dimensões enormes, para o Torreense, na Segunda Liga, infelizmente por causa da guerra daquela altura. Não tenho nada a apontar, era Segunda Liga mas encontrei um clube simpático, com boas condições. Depois, fui para a Madeira dois anos e estou muito feliz no Leça. Estou aqui há 28 anos. Foi uma mudança radical, a todos os níveis, da vida em geral, da temperatura, da gastronomia, do futebol, do profissionalismo. Foi uma mudança muito grande, mas graças a Deus adaptei-me bem.
Como é que acontece a possibilidade de vir para Portugal?
Aquilo, na altura, já não era a mesma coisa no Estrela Vermelha. Apareceu um empresário que foi lateral-direito do Sporting. Ele contactou-me, pensei duas vezes… vir do Estrela Vermelha para a Segunda Liga… consultei a família, decidi vir. Repito: estou muito feliz, acertei à grande.
São já quase 30 anos em Portugal, para permanecer é porque se apaixonou completamente pelo país, não?
Claro, completamente, completamente. Não tenho palavras para descrever. Encontrei tudo para me sentir bem aqui, em todos os sentidos. Tive sorte de vir para Portugal. Tive hipóteses, na altura, com empresários a ligar (os jogadores do Estrela Vermelha tinham muitas ofertas), de ir para a Suécia. Conhecia pouco Portugal, mas decidi por causa do tempo. A Suécia tem frio, as condições são melhores se calhar, mas deve ser melhor ir para Portugal porque a temperatura é melhor. Já me chega o frio do inverno da Jugoslávia. Continuo a dizer que foi uma boa escolha.
E também encontrou o Leça. Como foi a chegada aí e porque se tem mantido aí durante tanto tempo? Como jogador e como treinador.
Eu cheguei ao Leça quando estava na Primeira Liga. Foi um convite do treinador Rodolfo Reis, que tinha sido meu treinador no Nacional. E aceitei. Conhecia pouco o Leça, vim aqui jogar várias vezes contra eles. Aceitei, adaptei-me bem, encontrei muitos amigos aqui. Toda a gente sabe as dificuldades que o Leça passou, depois daquela descida administrativa em 1998. Depois, acabei a carreira, fui convidado para ser treinador e aceitei. Podia ter jogado mais, tinha 35 anos, um dia tinha de acontecer, não podia jogar a vida toda. Quando chegar a reforma, tenho de deixar o Leça [risos].
Não se imagina a deixar o Leça e a cidade?
Não, a cidade nunca vou deixar. Estarei sempre aqui. Deixarei o Leça clube quando não puder trabalhar mais, mas daqui não saio por nada. Apaixonei-me por Leça, tenho muitos amigos aqui. Para mim, Leça é tudo.