Orçamento do Governo pode fazer do PRR "mais uma oportunidade perdida"
22-10-2021 - 22:58
 • João Malheiro

O economista considera que a instabilidade negocial entre Governo e os partidos à Esquerda pode prejudicar o país e pede que uma ameaça de crise política não implique irresponsabilidade orçamental. Um eventual chumbo do OE não coloca em causa a execução do PRR, mas lançará Portugal para uma crise "na pior altura possível".

O economista Pedro Reis considera que o Orçamento do Estado para 2022 pode fazer com que o PRR seja "mais uma oportunidade perdida".

Em entrevista à Renascença, o antigo presidente da AICEP e atual diretor de Banca Institucional do BCP avisa que a instabilidade negocial entre Governo e os partidos à Esquerda pode prejudicar o país e pede que uma ameaça de crise política não implique irresponsabilidade orçamental.

O chumbo do Orçamento não coloca em risco a execução do PRR, mas Pedro Reis diz que Portugal entraria numa fase de instabilidade "no pior momento possível".

E o economista dá nota negativa às concessões feitas pelo Governo aos partidos de Esquerda.

Qual é a sua apreciação global da proposta inicial do Orçamento?

Há três aspetos que definem esta versão inicial do Orçamento e nenhum deles é propriamente estimulante.

A primeira é que isto é um Orçamento que não é transformacional. Ou seja, sabemos bem os constragimentos de um país endividado, com os objetivos orçamentais exigentes, mas a verdade é que esperar-se-ia uma fase em que mudou o paradigma e se tivesse um modelo de Orçamento diferente implícito. Uma fase em que a realidade se alterou, em que a mecánica de geração de crescimento sustentável fosse distinta. Acho que há uma perceção de falta de visão estratégica, de ambição, de um fio condutor.

O segundo aspeto é que, a nível das premissas, falta a ambição no crescimento. Depois de todo o PRR de arranque, depois da "bazuca", o crescimento potencial mexe pouco. Não mudamos verdadeiramente de escalão, na nossa economia. Outro aspeto preocupante nas permissas, é que não assentamos o nosso crescimento num modelo virtuoso, baseado no investimento privado e nas exportações. Ainda é muito dependente do consumo e de algum investimento público. É relativamente otimista nas permissas da inflação.

O terceiro aspeto são os sinais externos que se dá para atração de investimento, para a economia privada, para os mercados de capitais. A medida mais discutida antes destes dias mais intensos foi o englobamento. O englobamento não é, propriamente, um sinal de promoção de um mercado de capitais e isso é uma via que importa reforçar se queremos financiar e capitalizar as pequenas e médias empresas, que criam muito emprego neste país.

É uma expetativa gorada.

Depois de um ano e meio de pandemia, este Orçamento responde às necessidades das empresas e das famílias?

Não nos prepara e não responde aos desafios estruturantes e aos custos de contexto que já cá estavam antes da pandemia e aos desafios estruturantes que se intensificaram depois da pandemia.

Ou seja, se olharmos para os bloqueios do crescimento económico, em Portugal, temos uma Justiça que podia ser mais célere, uma burocracia que devia ser mais mitigada, temos uma fiscalidade que devia ser mais competitiva, temos uma qualificação da administração pública que devia ser muito mais reforçada e não vejo, sinceramente, que o Orçamento seja transformacional nessa matéria.

Depois, em termos de projeção do futuro, esperar-se-ia, para o novo mundo, pós pandemia, que tivéssemos alavancas de crescimento, baseadas na capitalização das empresas, na produtividade, nos ganhos de competitivdade, no reforço da escala que é uma base essencial à internacionalização da nossa economia. E também aqui vejo um esforço, vejo alguns bons exercícios, mas não são suficientes.

Quando fazemos a síntese desta leitura e olhamos com perspetiva no tempo, fica um sabor a "insuficiente".

O PRR prometia uma maior revolução?

O PRR exigia que se cavalgasse uma oportunidade para estruturar um paradigma diferente da nossa economia, mais virado para os motores do crescimento do setor privado, porque são os verdadeiros criadores de emprego. É o único caminho saudável e sustentável, para fazer crescer a economia o suficiente, para conseguirmos reduzir a despesa, libertar um peso alucinante de carga fiscal em cima das pessoas, das famílias e das empresas.

Portanto, tenho algum receio que seja mais uma oportunidade perdida. E começa a faltar espaço e tempo geracional para irmos comprometendo e desbaratando oportunidades estruturais que até o enquadramento europeu nos oferece.

O que é que lhe pareceu as alterações feitas aos escalões do IRS?

Mais do que uma análise muito precisa de algumas medidas, é a perceção geral de que tudo acaba por ser maneiras de se conseguir extrair mais carga fiscal e mais impostos das famílias e das empresas. E isso, realmente, não é surpreendente.

Enquanto estivermos a construir o equilíbrio orçamental com base em nivelar as receitas para conseguir pagar um certo nível de despesa, em focar as prioridades em agenda mais pública que privada, a verdade é que se torna dificil para as nossas empresas, que são a grande base de criação de um desenvolvimento equilibrado e integrador.

Temos de ter a consciência que todos os dias estas empresas são obrigadas a competir com economias internacionais muito agressivas, muito focadas na inovação, com um Estado muito amigo do investimento.

Enquanto as nossas medidas forem mais uma questão de satisfazer um certo leilão, mais político, e fechar equações com premissas mais rígidas, como é o caso da despesa pública, temo que não consigamos libertar todo o potencial de crescimento que nós precisamos para mudar de patamar.

Mas as alterações do IRS foram justas?

Acima de tudo, acho que estamos muito próximos, se já não o ultrapassarmos, do limiar aceitável de carga fiscal em cima das famílias. Quando os escalões cada vez mais baixos de rendimento atingem níveis máximos de cargo fiscal, quando uma classe média já é muito penalizada, quando se aponta para o englobamento, nós não estamos a dar um sinal de estímulo à criação de riqueza, de produtividade e de ambição.

Estamos a dar um sinal errado de que cada vez é preciso ganhar menos para pagar mais.

Esta instabilidade negocial das últimas semanas pode prejudicar o país?

Pode sim. Estes dias foram muito preocupantes. Mesmo que tenhamos a aprovação do Orçamento, e ainda quero acreditar que será o caso, já se começou a pagar um preço demasiado alto nas concessões que ainda ontem foram feitas.

Ou seja, quando atingimos uma certa flexibilidade equilibrada para todos os intervenientes num mercado de trabalho, quando atingimos alguma razoabilidade nos custos para as empresas, nós estamos a mexer com a base da competitividade, que é o motor do crescimento.

E não pode ser com base numa ameaça de uma crise política, que se deve evitar a todo o custo, que a estabilidade implique irresponsabilidade. Para nós salvarmos o Orçamentos, não podemos condenar a economia. O leilão político implicaria um preço insuportável para o crescimento equilibrado das empresas e do emprego.

Estamos num caminho muito sensível e arriscado, em que espero que impere o bom senso. O caminho entre uma escolha má ou uma escolha péssima é de evitar a todo o custo.

Tendo em conta as propostas que são defendidas pelo BE e pelo PCP e imaginando que o Governo faz algumas concessões, o Orçamento fica melhor ou pior do que o apresentado originalmente?

A avaliar pelo que tenho visto, todas as exigências comportam um impacto negativo na competitividade nas empresas, na sustentabilidade do modelo económico e no aumento da despesa pública.

Nestes dias, as luzes passaram de amarelo para vermelho.

O Orçamento tem sido negociado à Esquerda e todos os partidos dizem que o Governo tem de negociar à Esquerda. É benéfico que o Governo não faça negociações com partidos à direita, como o PSD?

As coisas são como são. Na arena política chegou-se a um determinado perímetro que tem uma razão histórica dos últimos anos e daí o Orçamento estar a ser negociado exclusivamente à Esquerda.

Sendo assim, não vale a pena contrastar isso com o que seria uma negociação mais ao centro. Para sermos pragmáticos e irrealistas, o que há que acautelar é que não se distorça de tal maneira o Orçamento e se atinja em definitivo a base do nosso crescimento.

Portanto, é bom que à mesa das negociações se tenha sempre bem presente que não podems hipotecar o futuro para tentar salvaguardar um presente, aparentemente, salvável, mas na prática prejudica o crescimento.

Um dos maiores pontos de discussão é de que um chumbo Orçamento pode colocar em causa a aplicação do PRR. Imaginando um cenário em que o Governo cai, quais serão as consequências?

Não me preocupa a capacidade de implementação do PRR. Felizmente, estes programas estão devidamente imunizados para conseguir absorver uma situação de transição e de emergência. O país como um todo tem interesse na boa execução do plano.

O meu ponto está no sinal que passamos para as pessoas, para o consumidor, para o investidor, para o aforrador, para a empresa estrangeira, para o exportador, para os clientes externos. Portugal entraria numa fase de instabilidade no pior momento possível.

Mais do que nunca, temos de ter sentido de Estado. Nunca é uma boa época para haver instabilidade política, mas neste momento, particularmente crítico do Mundo, parece-me de bom senso que se evite as crises que são dispensáveis. Já bastam os problemas que são inevitáveis.