Entre o entusiasmo e a indignação, os dinossauros estão de volta
25-09-2017 - 12:00
 • Marília Freitas com Renascença

Narciso Miranda (Matosinhos), Valentim Loureiro (Gondomar) e Isaltino Morais (Oeiras) são candidatos às autárquicas. Tiveram problemas com a justiça, mas isso não assusta parte do eleitorado. O que explica o seu perene encanto?


Filomena está a postos. Coloca-se à frente da sua banca de meias, mesmo na entrada do Mercado de Matosinhos. À porta, Narciso Miranda e uma pequena comitiva estão prontos para começar a “arruada” pelo mercado. “Venha cá para o meu lugar, senhor Narciso Miranda”, chama Filomena.

O candidato à Câmara de Matosinhos não se faz rogado e aproveita para tirar uma foto com a comerciante. “Gosto dele, foi ele que me pôs no mercado”, confessa Filomena. “É só por isso que vou votar por ele."

Ilda junta-se à conversa. Veste um avental distribuído pela comitiva de Narciso. “Para mim, foi o melhor presidente que Matosinhos já teve”, diz, recordando o trabalho feito ao nível da habitação social.

As manifestações de apoio são convictas e nem a menção aos casos de justiça que envolveram o candidato as fazem abalar. “Não me afecta”, diz Filomena, “não estou a par dessas coisas”.

Numa outra banca, Ana Maria corrobora: “Todos nós temos problemas. Não é por isso que se deixa de gostar da pessoa, não é?”

O politólogo António Costa Pinto explica, em entrevista à Renascença, que, por vezes, "as pessoas não acreditam na culpabilização" dos agentes políticos de maior proximidade. A "relação muito forte com determinados segmentos da sociedade" contribui para que "muitas vezes o voto não seja ideológico e seja fundamentalmente um voto pragmático, em que se dá o voto a quem se percepciona que fez alguma coisa por eles”.

“O dono de Matosinhos”

Mas há quem não concorde. “Eu acho que quem teve problemas com a justiça ao exercer cargos públicos e foi condenado por isso não devia ser permitido voltar a candidatar-se a um cargo público”, diz Fernando, relembrando a condenação de Narciso Miranda, em 2015, a dois anos e dez meses de prisão com pena suspensa, por abuso de confiança e falsificação de documento.

Oito anos depois, Narciso está de volta à corrida autárquica, mas não convence Fernando nem a jovem Eva. “É um gozo. Depois de tudo o que aconteceu, acho que ele quer é mais um tacho”, afirma Eva, que passa no exterior do mercado, alheia à acção de campanha que decorre lá dentro.

Ao seu lado, Cidália manifesta a esperança de que “sobretudo as gerações mais novas” não se esqueçam destes “casos”. “Espero que as pessoas tenham os olhos abertos. Eu não acredito que o leopardo mude as pintas. Quando lá estava [como presidente da câmara], parece que estava a tentar mostrar-nos alguma coisa para depois, por trás, favorecer amigos e familiares.”

Contudo, Cidália não exclui a hipótese de Narciso sair vencedor das eleições de 1 de Outubro. “Ele poderá ter alguma hipótese de ganhar, devido às pessoas mais velhas.” E acrescenta: “Toda a gente sabe quem é quando se fala em Narciso Miranda, é como se fosse dono de Matosinhos."

Esta é a segunda vez que Narciso Miranda está em campanha no mercado de Matosinhos. Os comerciantes já estão habituados ao reboliço em vésperas de eleições, embora hoje as campanhas sejam diferentes. “Isto agora não presta, trazem meia dúzia de gatos pingados. Antigamente era pessoal até mais não”, conta-nos Glória Teixeira.

Vendedora de fruta no mercado há mais de 35 anos, Glória começa a fazer contas à vida. À sua e à do ilustre visitante do dia. “O Narciso Miranda já teve o seu tempo lá. Esteve lá quase 25 anos. Agora que deixe vir os novos. Eu também o apoiei, mas agora, olhe, é ele e eu, já estamos velhotes.”

Em Matosinhos, o leque de escolha é grande (sete candidatos) e tem gerado alguma confusão, sobretudo com a divisão da ala socialista, de onde provêm três dos candidatos. Por isso, Narciso Miranda sente necessidade de esclarecer os mais desatentos: “já não é para votar na ‘mãozinha’”, símbolo do PS, agora é independente.

Em Gondomar, o “coração de ouro”

Em Gondomar, Valentim Loureiro apresenta-se como um “coração de ouro”. E, na verdade, por aqui não há quem não se lembre dos famosos presentes oferecidos pelo “major” nas duas décadas à frente da autarquia. “Dizem que dava frigoríficos e fogões. Ele chegou a ter uma loja de electrodomésticos”, conta Ernesto Cardoso, de 85 anos, que, no entanto, garante, nunca recebeu nada.

Nem ele nem a maioria dos entrevistados pela Renascença em Gondomar. Pelo menos, no que toca a electrodomésticos. Toda a gente confirma que “ouviu falar”, mas ninguém recebeu. “A mim deu-me uns lençóis, quando vim para o bairro”, confessa Maria Felismina, habitante do bairro do Monte, em Valbom.

O complexo habitacional foi construído no início dos 20 anos de mandato de Valentim Loureiro e não falta quem lhe esteja grato pela casa. “Fez bastante. Essas ruas por aí fora... Se não fosse ele não estávamos aqui com um bairro tão bonito”, afirma Camila.

Ao nível das autarquias, os governantes “têm uma grande capacidade de redistribuição, ou seja, de devolução à sociedade de bens. Isto passa-se ao nível de bairros sociais e de outras dimensões da sociedade local”, afirma o politólogo António Costa Pinto.

Por perto estão também as vizinhas Margarida e Angélica, que se juntam à conversa. As três recordam as viagens oferecidas pelo executivo de Valentim Loureiro às crianças e idosos. “Fomos de barco lá para cima. Gostei muito”, recorda Camila com um sorriso rasgado. “Ele também fez para as crianças, iam de avião até Lisboa”, acrescenta Margarida.

Mais abaixo, Maria e Luísa recordam a visita recente de Valentim Loureiro ao bairro, já durante a pré-campanha. “Deu-me um abraço”, afirma, orgulhosa, Maria. “As pessoas aqui gostam dele, ele deu-lhes uma casa”, acrescenta Luísa.

Dos bairros ao centro. As opiniões dividem-se

Impedido de se recandidatar nas últimas autárquicas, devido à limitação de mandatos, Valentim está de regresso para baralhar as contas no concelho.

“As opiniões dividem-se muito”, diz Manuel Sousa. “A minha opinião é que ele desta vez não terá a maioria absoluta e até tenho dúvidas que ganhe”.

Manuel vive também num bairro, mas no centro do concelho. Faz parte da comissão de moradores e chegou a reunir-se várias vezes com o então presidente da câmara para discutir as obras de requalificação dos prédios. Diz que “não é difícil lidar com o major. Ele comprometia-se e fazia”. “Mal seria se em 20 anos não fizesse nada”, acrescenta, salientando que não concorda com a forma como Valentim geriu o concelho. E lembra promessas ficaram por cumprir, como a linha de metro até ao centro do concelho.

Manuel não é o único a contestar a candidatura de Valentim Loureiro. Saindo dos bairros, no centro de Gondomar são várias as vozes cépticas. “Eu espero que as pessoas não se tenham esquecido das polémicas e dos casos judiciais”, alerta Daniel Barros, habitante de Rio Tinto e formador no centro de emprego, numa alusão à condenação a quatros anos de pena suspensa no caso Apito Dourado e ao caso da Quinta do Ambrósio, em que Valentim foi acusado de crime de burla qualificada em co-autoria, acabando ilibado pelo tribunal.

Uma questão de idade?

Valentim Loureiro faz 79 anos em Dezembro. Um facto que não passa despercebido aos gondomarenses e que deixa muitos reticentes. “Acho que a idade dele já não permite estar à frente da câmara. Já não tem as faculdades que tem um homem de 40 ou 50 anos”, diz Joana Negrão.

Encontramo-la à saída do centro de emprego de Gondomar, onde está em formação. Com 46 anos, está há três sem trabalho e queixa-se da falta de indústria no concelho, que lhe dificulta a procura de emprego na área do secretariado.

Quando se fala de autárquicas, Joana lamenta a falta de informação. “Temos recebido um folheto ou outro no correio, nada mais”. Acções de campanha, diz, “só na feira”.

O regresso de Isaltino

“Isaltino, sim”, “Isaltino Morais”, “Isaltino, claro”. A resposta repete-se ao longo da tarde. Homens, mulheres, mais novos e mais velhos, muitos são os que vêem com bons olhos o regresso do ex-presidente da Câmara de Oeiras. Susana Serrinha não hesita: “Sou nascida e criada em Oeiras. Portanto, por motivos óbvios, já tenho um candidato."

A moradora de 42 anos destaca algumas das marcas que Isaltino Morais deixou durante os seus sete mandatos. “Trouxe as maiores empresas, as multinacionais. Temos os três maiores parques empresariais centralizados aqui em Oeiras”, recorda, junto a um lago, perto do Parque dos Poetas. Ao lado, Elisabete Pedro, também de 42 anos, reforça: “Ele tem feito um trabalho notável.”

Afastamo-nos da zona empresarial e chegamos ao Largo Henrique Paiva Couceiro. É aí que passam os autocarros e os comboios que servem o concelho de Oeiras.

À espera do autocarro, vamos encontrar Bonifrete Dias, que nos dá a mesma resposta. “Está a ver esta cara aqui mesmo à nossa frente? É ele a minha escolha”, diz, enquanto aponta para o cartaz de Isaltino Morais.

“Já lhe dei beijinhos. Ele até dá a cara para a gente dar beijos. Não vira a cara a ninguém”, continua. Mesmo antes de a camioneta chegar, ainda ouvimos uma senhora dizer: “É boa pessoa, é."

Embora na maior parte das vezes a descrição do trabalho de Isaltino Morais se resuma a um vago “fez muito pelo concelho”, os moradores são rápidos a elogiar a proximidade que sentem ao candidato. “Gosto dele como ser humano”, afirma Irondina Guilherme, de 56 anos, residente no concelho há mais de 20.

Não muito longe dali, na Quinta das Palmeiras, ponto de encontro para muitos em Oeiras, Isaltino Morais distribui panfletos com o seu grupo de apoio. Não é dia de “arruada”, mas a campanha não pára. Com o grupo, que não tem mais de duas dezenas de pessoas, cruzam-se alguns cidadãos. Alguns param para cumprimentar e deixar algumas ideias para o concelho, caso Isaltino vença as eleições.

O impacto dos longos mandatos nas relações autarcas-munícipes é destacada por António Costa Pinto: “Convém não esquecer que muitos destes ‘dinossauros’ autárquicos criaram laços estáveis há muitos e muitos anos com estes concelhos. Não é fácil, por isso, desalojá-los."

O investigador distingue as esferas de influência nacional e local, sublinhando que esta última "é muito propícia a dirigentes políticos carismáticos que têm uma capacidade de ligação a certos estratos da sociedade muito fortes".

Agora a concorrer pelo Movimento Inovar Oeiras de Volta, Isaltino Morais foi presidente da Câmara de Oeiras, pelo PSD, entre 1985 e 2003. Em 2005, ficou impedido de se recandidatar pelo partido, por ser arguido em processos de branqueamento de capitais, fraude fiscal, corrupção passiva e abuso de poder. Deixou a militância e voltou a ganhar as eleições, pelo movimento Oeiras Mais à Frente. Acabou por ser condenado a dois anos de prisão, dos quais cumpriu 14 meses, saindo, em Junho de 2014, em liberdade condicional.

“Rouba, mas faz obra”, não é argumento

Para alguns, o facto de Isaltino Morais ter estado preso é determinante na escolha para o dia 1 de Outubro.

Para Miguel Pinho, de 33 anos, o candidato que agora regressa não é uma opção, “tendo em conta que a sua condenação teve a ver com crimes relacionados com o seu cargo” e que “vai exercer um cargo público que exige a confiança dos eleitores”. Para este munícipe, "nunca deve ser argumento o célebre adágio 'rouba, mas faz obra'".

Também Sofia Mendes, de 43 anos, questiona: “Vamos dar outra vez legitimidade a uma pessoa que já se percebeu que é facilmente ludibriável para voltar a usar o poder em favor próprio?”.

Numa praceta de Linda-a-Velha, uma zona mais residencial do concelho, cruzamo-nos com alguns moradores que também discordam da candidatura de Isaltino Morais. Emanuel Marques considera que “é um mau exemplo para o país, para as autarquias todas”. Para este eleitor de 59 anos, “autarcas que já foram condenados deviam ser proibidos de exercer cargos públicos”.

Um pouco mais à frente, Maria Filomena Neto, de 69 anos, acredita que Isaltino Morais é essencialmente apoiado pelas pessoas “a quem ele deu casas”. Descontente com as alternativas – “vira o disco e toca o mesmo” –, revela que vai votar em branco.

Para aqueles que apoiam o ex-presidente da câmara, as questões com a justiça não se colocam na hora de decidir. “Mais tarde ou mais cedo, se não é este é aquele, se não é aquele é outro”, afirma Ana Pamplona.

A ideia repete-se pelos vários pontos por onde passamos. De volta a Porto Salvo, Susana Serrinha afirma: “Crimes todos cometem. Se calhar até bem mais graves. Apesar de ter cometido esses crimes, [Isaltino Morais] continuou a fazer muito por Oeiras. Isso só revela o quanto ele gosta do concelho."

Quando chega a hora de ir votar, o “sentimento anticlasse política faz com que muitas vezes as dimensões morais tenham menos importância nas atitudes das pessoas”, conclui António Costa Pinto.