D. Rui Valério. Impor quotas para a imigração pode "condenar alguém a condições de sobrevivência, senão mesmo de morte"
04-09-2024 - 07:30
 • Ângela Roque

D. Rui Valério espera que Orçamento do Estado para 2025 não ignore necessidades dos mais frágeis. Não desliga o aumento da pobreza do crescimento da imigração, mas discorda da imposição de quotas. Em entrevista à Renascença, no primeiro aniversário como Patriarca, lamenta que o aborto seja “arma de arremesso político” quando dá jeito aos partidos, e lembra posição da Igreja relativamente aos temas fraturantes.

O Patriarca de Lisboa pede que o próximo Orçamento do Estado tenha "um olhar atento" aos "mais débeis e fragilizados".

Em entrevista à Renascença, D. Rui Valério diz que o documento "não deve reduzir-se a ser um instrumento meramente económico ou financeiro". E avisa que uma crise política é "sempre um tempo de impasse" que nunca é boa para o país.

Um ano depois de se ter tornado Patriarca, D. Rui reflete sobre o seu tempo no cargo, o que já foi feito e o que ainda tem de ser projetado para o futuro. A criação de uma paróquia para as pessoas em situação de sem abrigo é uma das prioridades do novo ano pastoral.

Faz um ano que entrou solenemente na Diocese de Lisboa. Que balanço faz?

Os mesmos sentimentos que presidiam no meu coração há um ano, de uma disponibilidade total, uma vontade férrea para servir a Igreja, servir Jesus Cristo e servir a causa do Evangelho, servir a cidade, a humanidade e o Patriarcado, essa disponibilidade e esse sentido profundo continuam a existir. É uma chama que não se extinguiu, antes pelo contrário.

Disse logo no início que queria ser um bispo próximo das pessoas. Sente-se próximo das pessoas, do clero, da diocese, das comunidades?

Quando um bispo toma posse de uma diocese, no caso o Patriarcado, é também o Patriarcado que toma posse do bispo. Nessa medida, sinto que as pessoas querem estar sempre próximas do seu bispo e do seu patriarca. Sinto a sua presença, onde vou, e não só... ainda agora, por esta ocasião deste primeiro aniversário, tenho recebido mensagens de pessoas que nem partilham o sentido da nossa fé, não são cristãos sequer e que se sentem próximos. E isto é fascinante!

Um bispo não se pertence a si, pertence a uma comunidade, a um povo, é parte integrante desse povo. Santo Agostinho dizia, com muita propriedade, 'Cristão convosco, Pastor para vós'.

Por ter sido pároco na periferia de Lisboa, estas situações mais extremas do ponto de vista social não são propriamente uma novidade. Tive ocasião de conhecer o drama dos bairros de lata, e a necessidade das pessoas

A proximidade dos bispos também se revela na forma como falam dos problemas concretos da vida das pessoas. Lisboa tem vários problemas. Tem-se manifestado preocupado, por exemplo, com o aumento da pobreza, que é visível no número crescente de sem abrigo. Como é que isto se resolve?

Na nossa perspetiva cristã aquilo que do ponto de vista sociológico é problema, para nós é oportunidade. E oportunidade de evangelização, de pastoral, de incrementar o sentido construtivo de uma nova sociedade.

Há vários anos que, por ter sido pároco na periferia de Lisboa, estas situações mais extremas do ponto de vista social não são propriamente uma novidade. Tive ocasião de conhecer o drama dos bairros de lata, e a necessidade das pessoas. Descobri, em primeiro lugar, que nesses contextos a luz da dignidade do ser humano continua a estar acesa. E em segundo lugar, que a pessoa quando vive, ou cai numa situação problemática como essa, cultiva um profundo sentido da necessidade em relação aos outros, de não ser autossuficiente. É um contexto muito próximo ao desenvolvimento da solidariedade e da comunhão.

Normalmente, as pessoas que estão na pobreza acreditam na humanidade, no ser humano, e por isso esperam dos outros - das instituições, a vários níveis, da Igreja - uma mão, uma ajuda, esperam o surgimento de um Cireneu.

Como sabe, em Lisboa, estamos a atuar em diversas frentes.

Há várias instituições ligadas à Igreja, ao Patriarcado....

E até da sociedade civil,de vários horizontes.

A pobreza é um apelo, é um grito que nos obriga a cultivar o sentido da integralidade do ser humano

Falamos da Comunidade Vida e Paz, ou da Associação João 13, por exemplo...

E o que esses diversos projetos oferecem não são só e apenas ajudas físicas, empíricas, são ajudas de outra ordem: a companhia, a atenção, a escuta, o estar próximo dessas pessoas.

A pobreza é um apelo, é um grito que nos obriga a cultivar o sentido da integralidade do ser humano, que não necessita só daquela comida para saciar a sua fome, ou só daquele cobertor para se confortar no tempo do frio. O ser humano precisa de muito mais do que isso.

Em Lisboa temos esta realidade, diria, provocada pela providência de Deus. Pelas diversas instituições que existem, acho que estamos a caminhar no sentido de dar uma resposta integral, à pessoa no seu todo.

O problema da pobreza não pode ser pensado, resolvido, estruturado no sentido de uma cidade ou de uma região, nem sequer de um país. A Europa está a ser viveiro de novas formas de pobreza

Mas, não tarda essa resposta?... Estamos em 2024, e já devia ter avançado uma estratégia nacional de combate à pobreza, para resolver a situação das pessoas em situação de sem abrigo.

Eu aí sou ainda mais radical: julgo que o problema da pobreza não pode ser pensado, resolvido, estruturado no sentido de uma cidade ou de uma região, nem sequer de um país. É a Europa atualmente que tem de tomar consciência de que, ao mesmo tempo que é este continente que possui dentro de si as forças produtoras de grandes riquezas - seja a partir da indústria, das novas tecnologias, do desafio agora da inteligência artificial, seja a partir de uma tradição histórica -, esta mesma Europa está a ser hoje o lar, um viveiro de novas formas de pobreza, que não são só aquelas que encontramos representadas nos sem abrigo, nos abandonados, nas pessoas que pedem comida ou que nos batem à porta.

Quando há uma pessoa que já não tem razões para a sua vida, por muito dinheiro que tenha, quando os jovens já não acreditam no amanhã, e encontram-se num profundo desespero, desilusão, numa apatia e num tédio permanente, a Europa tem que compreender que isto são formas de pobreza do ser humano!

Por isso é que eu acho que a União Europeia - o Papa Francisco, aliás, tem insistido muito nesse sentido - tem de olhar para os grandes desafios europeus, aqueles que verdadeiramente nos batem à porta e nos entram dentro de casa, permanentemente, para que haja aqui uma resposta global de todos os países que pertencem à UE.

A resposta para estes grandes desafios e problemas tem de ser numa perspetiva de integralidade ao nível europeu

E um dos desafios é a imigração, que se interliga com as questões da pobreza...

Interliga-se e situa-se dentro deste contexto. Porque não podemos estar a fazer um esforço enorme como estamos a fazer, enquanto país e sociedade, aqui em Portugal, e concretamente aqui em Lisboa, onde está a ser feito um esforço enorme para responder às solicitações, mas depois sabemos que muito provavelmente, a pessoa que hoje, segunda, terça ou quarta-feira, está a ser atendida e acompanhada aqui em Lisboa, passado uma semana ou 15 dias já está no Luxemburgo, ou na Alemanha. Então, se houvesse aqui uma estratégia europeia no seu todo, seria tudo muito melhor para a própria pessoa, que é isso que nos interessa.

Já agora, permita-me este aparte.... em Agosto dialoguei com uma técnica que está a trabalhar nos serviços de imigração da Suíça e impressionou-me que alguns dos utentes que ela atende lá, são pessoas que já passaram por Portugal ou Espanha, ou que foram da Grécia. E chegam ali como se estivessem a pisar solo europeu pela primeira vez!

Eu sei que a Suíça não integra a União Europeia, mas é um exemplo, quem fala da Suíça pode falar do Luxemburgo, etc. Então, se houvesse aqui um trabalho em rede, que contemplasse isto tudo, então para aquela pessoa não seria já muito mais prático? Até para encontrar emprego, habitação, o processo ter começado no momento em que ao nosso continente.

A resposta para estes grandes desafios e problemas tem de ser numa perspetiva de integralidade ao nível europeu.

A emigração está presente naquilo que é a estrutura espiritual e cultural, a identidade mais profunda do próprio Ocidente

Tem de haver mais solidariedade entre os países, sendo que os países também não têm todas as mesmas condições económicas para receber tanta gente. Pergunto- lhe, por isso, se é favorável à definição de uma política de quotas para a imigração?

Não sou, obviamente. E não sou porque nós, em Portugal, temos a experiência de ser um país de emigrantes.

E somos de novo, cada vez mais, um país de emigrantes...

A emigração está presente naquilo que é a estrutura espiritual e cultural, a identidade mais profunda do próprio Ocidente. Não nos esqueçamos de que a nossa referência cultural, e não é só do ponto de vista religioso, é Abraão, que foi chamado a sair da sua terra para ir para um lugar, diz a Bíblia, "que Deus lhe indicava". Ele saiu, não porque quis, mas porque respondeu a um apelo. É exatamente o que sucede com a quase totalidade daqueles que nos visitam.

Tal como os nossos emigrantes do passado… os meus familiares, o meu próprio avô, que nos anos 20/30 sentiu-se obrigado a ir para o Brasil, depois os meus tios, nos anos 60, sentiram-se chamados a ir para França. Mas não foram porque quiseram, houve um imperativo superior, de organizar uma vida com outras condições, de trabalhar para oferecer melhores condições à sua família.

Há este imperativo, e é bom que tenhamos presente que um emigrante, por definição, não deixa a sua terra porque quer, ou por vontade própria. Está a ver o que é nós colocarmos. estas quotas às pessoas? Pode ser que eu esteja a ser exagerado, mas com isso podemos estar a condenar alguém, ou muitos 'alguéns', a condições de sobrevivência, senão mesmo de morte.

Em vez de quotas, prefiro falar de outra coisa: de uma política de integração e acolhimento, e isso é o que nos falta. Porque repare, eu também compreendo que se vai para estas soluções ou propostas muito extremas, quando de facto não se vislumbram outros caminhos... mas, há há outros caminhos!

Imagine o que seria se todos os responsáveis das nações - e estou a pensar concretamente na União Europeia - se sentassem para definir muito bem e traçar alguns pontos, perspetivas, rumos de acolhimento para integrar aqueles que nos batem à porta?

Um grande receio que sempre tive, mas não só em relação a esta questão em particular, é que estejam a acontecer possibilidades, alternativas, chances que não estamos a ser capazes de desenvolver e de aproveitar. A imigração para nós pode ser uma chance para a Europa.

Para quem governa, o desafio é grande, nas políticas que tem de definir e nas decisões que tem de tomar. Mas, nos vários países que estão a enfrentar problemas com a imigração, esses problemas tem a ver com as condições socioeconómicas da própria população residente. Voltando aqui a Lisboa, que já é das cidades do mundo com mais turistas por habitante, isso tem significado um aumento de receitas vindas do turismo (taxa turística). Essas receitas não devem ser canalizadas para ajudar a resolver os problemas?

Duas coisas, em jeito de premissa: eu vivi alguns anos em Roma, e se há experiência do que é uma cidade invadida por turistas é Roma. E é uma riqueza, pelo facto de contribuir muito para uma interação geracional e internacional entre as pessoas.

Relativamente ao ponto a que refere (taxas), é um terreno que eu não domino, de todo. Aquilo que para mim seria desejável é que a canalização de meios e recursos tivesse sempre presente a dignidade de cada ser humano. Isto para mim é vital, fundamental, e do ponto de vista ético é o que distingue o Ocidente, com toda a sua tradição filosófica, antropológica, ética, humanista, de outros contextos culturais que não o têm. Mas, a dignidade de cada ser humano merece, tem direito a recursos, sejam eles oriundos de onde fôr. E admito que o que referiu do turismo possa ser um desses casos.

Uma estrutura como é uma paróquia, é lugar de escuta, centro de acolhimento, é um ponto onde a pessoa se pode aproximar e encontrar Jesus Cristo

Falando de novo dos sem abrigo, manifestou recentemente a intenção de criar uma paróquia em Lisboa, vocacionada para esta população. Qual é a sua ideia exatamente? Quando é que isto vai avançar, onde e como é que vai funcionar?

Uma paróquia é uma instituição, uma estrutura, que tenta responder a dois requisitos: o da proximidade e, em segundo lugar, o da dádiva.

Quando no Patriarcado, começámos a tomar consciência da necessidade de oferecermos aos nossos irmãos sem abrigo muito mais do que o simples alimento ou a roupa, começámos a pensar em abraçar um projeto, que não é propriamente uma novidade no Ocidente, já existe noutras grandes cidades, mas que tem em vista duas coisas: em primeiro lugar promover a real proximidade da Igreja com uma faixa da população significativa, e em segundo lugar fazer chegar a essas pessoas uma palavra, um sentimento, um auxílio.

Vou aqui contar uma história que me marcou. Como Patriarca ainda hoje tento, uma vez por mês, acompanhar um grupo que vai apoiar os sem abrigo com comida, vestuário, medicamentos e por vezes outro tipo de auxílio, quando é necessário e possível.

Mas faz isso numa das instituições ligadas à Igreja?

É uma iniciativa que surgiu numa paróquia onde fui pároco, são dois grupos que uma vez por mês, cada um em domingos diferentes, vem a Lisboa fazer essa partilha, e eu quando tenho disponibilidade acompanho esse grupo.

Aqui há dias cruzei-me com um senhor que era angolano e que me disse "estou aqui, não tenho papéis, logo não tenho trabalho, logo não tenho habitação, logo não tenho onde dormir, logo não tenho onde comer. E também não tenho ninguém a quem me possa queixar e dizer aquilo que estou a passar". Aquilo marcou-me! Quer dizer, no meio de tanta carência, este homem não tinha alguém com quem pudesse dialogar e contar a sua condição...

Uma estrutura como é uma paróquia, é lugar de escuta, centro de acolhimento, é um ponto onde a pessoa se pode aproximar e encontrar Jesus Cristo.

Portanto, o objetivo é mais pastoral, de apoio espiritual?

Exclusivamente. Complementar à outra ajuda material, que já existe. Aqui é oferecer o que é particularidade e prerrogativa que a Igreja oferece à sociedade.

É uma prioridade para o próximo ano pastoral, que agora vai começar?

Tudo aquilo que tem a ver com o ser humano, particularmente com o ser humano que sofre, que está numa situação de debilidade ou fragilidade, isso é sempre prioritário.

No pós JMJ Lisboa, a Diocese tem conseguido manter uma dinâmica ao nível da pastoral juvenil? É também uma prioridade para este novo ano pastoral?

A Jornada Mundial da Juventude em Lisboa é sempre motivo de agradecimento, de júbilo, de uma grande alegria. Foi um momento forte, pujante, de Igreja, de juventude e de esperança.

O que temos verificado - é esse o meu testemunho - é que aquele entusiasmo que há um ano era tão visível, não só se manteve, como curiosamente tem levado os nossos jovens a uma nova consciência de serem Igreja e de estarem na sociedade.

A adesão a projetos, acreditarem nos valores e na Palavra do Evangelho, é sempre um motivo que nos comove.

Quando se assinalou o primeiro aniversário da conclusão da JMJ (há um mês) programámos fazer uma celebração muito simples, na Sé de Lisboa. Era agosto, férias, estava muito calor, não havia jovens cá. E aquilo que nos surpreendeu foi que a Sé Catedral de Lisboa se encheu completamente, dentro e fora!

É um sinal do entusiasmo que se mantém?

Isto é um sinal que vem de Deus. E Deus está a insistir que enviou o seu Filho Jesus Cristo ao mundo, para salvar o mundo. Jesus não desistiu dos nossos jovens! Aquilo que eu tenho percecionado e interpretado é que Cristo está-nos a dizer que não desistiu, de todo, dos jovens e também não quer que os jovens desistam d'Ele. E os jovens estão a dar-nos exatamente esta prova. E aproveito para enviar uma palavra de agradecimento ao Papa Francisco, que verdadeiramente tocou de uma forma inaudita, maravilhosa, o coração dos nossos jovens- Ele está agora a realizar uma grande viagem pastoral, mas aproveito para lhe dizer, a partir daqui, que Lisboa e os jovens de Lisboa estão com ele.

Esteve quase um ano à espera de bispos auxiliares, agora já tem o D. Nuno Isidro e o D. Alexandre Palma. Estas novas ajudas permitem lhe encarar o novo ano pastoral com outra dinâmica?

Naturalmente, os bispos auxiliares são sempre um motivo de esperança, na medida em que trazem um novo olhar, trabalho novo e novas experiências. Não vou dizer que agora é que vamos começar a trabalhar a sério, porque temos feito isso desde há um ano para cá, continuando o trabalho dos meus predecessores. Mas, não haja dúvida que é uma nova energia, um novo dinamismo que irá estar presente na Diocese, nas suas diversas vertentes.

A corrida para mim não é só uma atividade física, é uma atividade onde vamos pensando, rezando.Gosto muito de correr sozinho, exatamente porque é um tempo de introspeção e meditação

Mas esta espera exigiu mais de si, em termos de agenda. Do ponto de vista mais pessoal, como é que é o dia a dia do Patriarca? Já sei que começa cedo, sempre a correr…

É verdade! Não faço isso por carolice, foi por propósitos pastorais que comecei a ter essa prática. Ganhei este hábito na diocese em que estive anteriormente (Forças Armadas e de Segurança), e como fui também capelão militar, mas mesmo quando era pároco, era necessário acompanhar os jovens nas suas caminhadas, temos de estar em forma .

Mas, a corrida para mim não é só uma atividade física, é uma atividade onde vamos pensando, rezando. Por vezes acontece também que Deus me dá a oportunidade de, no decorrer da corrida, poder fazer algum bem. A última vez foi há poucos dias, um irmão invisual que andava literalmente perdido, ao pé de Moscavide, e tive a oportunidade de nesse dia fazer essa boa ação de o acompanhar ao Centro de Saúde. Portanto, posso dizer que é um momento de profunda comunhão, com a natureza, com Deus.

Corre sempre sozinho?

Gosto muito de correr sozinho, exatamente porque é um tempo de introspeção e meditação. E depois também porque não sou capaz de acompanhar ninguém, tenho um ritmo muito próprio. Chamar-lhe corrida fica bem, mas é um caminhar um bocadinho mais mais veloz.

Hoje correu quanto tempo?

Uma hora, normalmente é o que faço. Quando estava embarcado como capelão militar, às vezes o navio partia às 04h00 da manhã, eu levantava-me às 03h00 para ir correr ainda antes de partir.

E como é o seu dia a dia? Tem uma agenda sempre muito complicada?

É muito cheia, graças a Deus! Temos três tipos de compromissos: o primeiro as audiências - seja com o nosso clero, seja com representantes de instituições -, são sempre encontros para fazer balanços, refletir acerca de problemas presentes. É nesses momentos que fico a conhecer melhor o estado das instituições.

O segundo são aqueles compromissos institucionais que nos levam a conferências, encontros ou cerimónias, já no espaço público, a inaugurações, assinalar aniversários, às vezes com a vertente da celebração litúrgica. Na nossa tradição de Lisboa, o momento que assinala um aniversário normalmente não se faz sem um momento de oração e louvor.

Depois há espaço que dedico para ir encontro de alguém de que tenha notícia que está em necessidade. Aí é uma iniciativa muito pessoal, que não é assinalada sequer na agenda.

Arranja sempre sempre tempo para isso?

Tento, e quando não é às 6h da tarde, terá de ser às 9h, ou 9h30 da noite. Também há um tempo para a leitura, o estudo, para nos mantermos atualizados. E, se de manhã começo o dia com um louvor, na corrida, tento terminar o dia com uma oração pessoal, na nossa capela.

Mas, a complicar a agenda, acresce o facto de ainda acumular as funções da Diocese das Forças Armadas e de Segurança?

Até que o Papa nomeie o novo Bispo, na qualidade de administrador apostólico, continuo a acumular.

Ainda não tem indicação de quando é que haverá novo bispo?

Não tenho, sendo que, obviamente, a minha presença e prestação nas Forças Armadas e Forças de Segurança continua, mas a um ritmo muito mais brando daquelo que era quando estava a tempo inteiro.

O jornalismo, a informação, é vital para a democracia. O jornalismo é vital para que o cidadão se sinta verdadeiramente situado no seu tempo, no seu país

No meio desta agenda preenchida, como é que se mantém informado? O que é que privilegia, a rádio, a televisão, jornais?

A rádio e os jornais são para mim uma prioridade sempre presente.

Que rádio é que ouve?

Renascença, obviamente. Mas devo dizer que nesse aspeto sou muito plural. Depois, através dos novos meios de comunicação, facilmente se chega aos jornais diários. Sou assinante de dois.

É um bom exemplo, porque estamos numa fase em que se fala muito do financiamento dos meios de comunicação social e ser assinante é um sinal de que contribui para esses meios subsistirem.

Esse sentido de justiça para mim é óbvio. E em circunstâncias em que houve algum meio de comunicação que estava numa situação mais difícil, cheguei a ponderar, e a falar com alguém com responsabilidades, sobre a possibilidade de encetarmos uma ação de solidariedade.

Costuma-se dizer que o jornalismo, a informação, é vital para a democracia… Não, o jornalismo é vital para que o cidadão se sinta verdadeiramente situado no seu tempo, no seu país.

A cidadania cresce e desenvolve-se na medida em que o cidadão está verdadeiramente em contacto com as vicissitudes da comunidade, com a vida que sucede para além da sua casa, para além da sua paróquia, para além da sua terra. Isto é a cidadania no sentido mais nobre da palavra. Por isso sou muito favorável a que haja um crescimento, um desenvolvimento da própria informação e do próprio jornalismo.

(Espero) que o Orçamento de Estado tenha um olhar atento para aqueles que na sociedade são os mais débeis e os mais fragilizados

Vamos entrar nesta altura numa fase de negociação do Orçamento do Estado (OE), não sendo ainda certo que se consiga chegar a acordo. Como é que vê a possibilidade de Portugal entrar numa crise política, se não houver acordo?

Uma crise nunca é boa, como sabemos, é sempre um tempo de impasse. Do meu ponto de vista, um Orçamento do Estado deve refletir não só as grandes linhas estratégicas, do ponto de vista económico, mas também as grandes linhas estratégicas de humanidade, de humanismo. Nesse sentido, compreendo que qualquer OE tem de privilegiar o equilíbrio financeiro e económico, mas deve privilegiar sobretudo os valores que consagram cada ser humano, a sociedade, cada comunidade, cada homem.

(Espero) que o Orçamento do Estado tenha um olhar, não vou dizer privilegiado, mas um olhar atento para aqueles que na sociedade são os mais débeis e os mais fragilizados. O Orçamento deve consagrar, quase que de um ponto de vista ético e de obrigatoriedade, o apoio, o auxílio e a proteção a dar a cidadãos que não têm outras fontes, rendimentos ou meios de sobrevivência. Isso deve estar refletido no Orçamento do Estado.

Portanto, se pudesse dar um conselho aos políticos, era esse que dava?

Exatamente. Que o Orçamento do Estado não deve reduzir-se a ser um instrumento meramente económico ou financeiro.

Todos temos que ter consciência do que é que falamos quando estamos a falar de eutanásia

A agenda política de alguns partidos continua a passar pelos chamados temas fraturantes e um deles é a eutanásia. A lei que despenaliza a morte medicamente assistida foi aprovada já o ano passado. Falta ainda regulamentar, mas o Tribunal Constitucional está há um ano para deliberar sobre o pedido fiscalização sucessiva que foi entregue por deputados do PSD e também pela Provedora de Justiça. O TC diz que não tem ainda uma previsão de data para tomar uma decisão. Compreende esta demora?

Eu, como cidadão, entendo que não houve espaço nem tempo para refletir sobre esta questão, que é transversal a toda a sociedade e que a todos diz respeito. A sensação que tenho é que foi tudo feito assim à pressa e um pouco às escondidas, porque não houve um debate, uma reflexão nacional, que falta fazer.

Acho que todos temos que ter consciência do que é que falamos quando estamos a falar de eutanásia. A Igreja, como sabe, relativamente a esta matéria, tem uma posição que não é só clara, mas é extraordinariamente bela, assente na afirmação do primado e do valor da vida humana. Eu costumo dizer que a grande invenção de Deus, segundo a Escritura, é a vida.

A Igreja tem-se mobilizado em inúmeras iniciativas e dentro dela têm surgido muitas associações e instituições cujo objetivo é exatamente zelar pela vida. E estamos numa perspetiva também de valorizar sempre a dimensão paliativa.

Desde o Papa Pio que a Igreja tem uma reflexão própria sobre a obstinação terapêutica. Moralmente falando, o prolongamento da vida não pode ser a todo o custo, quando significa prolongamento do sofrimento, o desfasamento da própria dignidade da pessoa enquanto ser humano, aí temos de refletir e ponderar muito bem.

Como sociedade devíamos dedicar mais tempo, mais reflexão e mais espaço a esta temática, porque aquilo que eu mais receio, de facto, é que entremos aqui numa ótica meia tecnicista, meio economicista, que depois vai desvalorizar e não vai ter em conta devidamente aquilo que é a condição e a situação da pessoa..

A lei já foi aprovada. Confia que o Tribunal Constitucional a possa declarar inconstitucional?

(silêncio)

Eu acho que uma lei tal como está feita, e uma lei que já chegou onde esta chegou, sinceramente, não prevejo, nem faço qualquer palpite nem profecia acerca da que poderá ser a atitude do Tribunal Constitucional. O meu silêncio não foi um silêncio de hesitação. É que não gostaria que as minhas palavras fossem entendidas como uma espécie de pressão.

Aborto. "Lamento que um tema que é tão delicado por vezes seja usado como uma arma de arremesso, para algumas forças afirmarem determinados interesses ou objetivos. Não sei se isso é muito sério"

O tema do aborto também voltou à ordem do dia, depois do PS ter anunciado que tenciona propôr o alargamento dos prazos legais das 10 para as 12 ou 14 semanas e mexer na objeção de consciência dos médicos. Como é que avalia esta posição agora, relativamente a uma matéria que já foi alvo de referendo no país?

Relativamente ao aborto, a posição da Igreja é muito clara e assertiva. Desde que andava no 11.º ano que esta temática tem alimentado muita discussão na nossa sociedade...

Sim, já houve dois referendos sobre a matéria.

Eu lamento é que um tema que é tão delicado e que lida diretamente com a vida do ser humano, por vezes seja usado como uma arma de arremesso, como um meio, um objeto para algumas forças afirmarem determinados interesses ou objetivos. Não sei se isso é muito sério. Ou seja, o aborto remete-nos imediatamente para estamos a falar da vida de seres humanos, na sua vida e dignidade. E estou a falar tanto do feto como da mãe.

Acho que devia haver aqui mais recato, atenção e até cuidado. A vida humana é sagrada, não pode ser assim tomada em determinadas ocasiões só porque sim, ou só porque há ali outros interesses e objetivos. O ser humano devia ser um valor absoluto, tratado com respeito, com dignidade, em todas as situações.

Sobre os embriões criopreservados, para serem usados em tratamento de infertilidade, à luz da nova lei os dadores deixaram de ser anónimos, e os embriões (sem dador identificado) podem ser destruídos. O Bloco de Esquerda apresentou já um projeto para para tentar que esse material não seja destruído, falta agendar o debate no parlamento. Qual é a posição oficial da Igreja relativamente a esta matéria?

A posição oficial da Igreja é que cada ser humano tem direito a um pai e uma mãe, e que a procriação depende sempre de uma união real. Ou seja, o amor acompanha, o amor é a fonte, é a meta da vida de qualquer ser humano. E qualquer ser humano tem, desde o momento da sua fecundação, direito a uma presença efetiva de um pai e uma mãe. Esta é a posição oficial da Igreja.

Devia assegurar-se aqui uma mudança na lei mais profunda, que evitasse para já a destruição deste material? Porque falamos precisamente de vida humana...

É exatamente essa a nossa perspetiva.

Abusos. "Este é o momento de irmos ao encontro daquilo que é possível fazer para que haja uma reparação integral da pessoa"

Sobre os abusos sexuais na Igreja, em Portugal estamos numa fase crucial da entrega dos pedidos de indenização, embora não tenha sido ainda definido o valor das compensações. É uma matéria de difícil consenso entre os bispos?

Este é um tema que toca profundo no coração de todos nós... a primeira palavra que me surge, espontânea, quando se fala de abusos é 'perdão', é pedir perdão. Em segundo lugar, uma palavra de compreensão pelo sofrimento daqueles que foram vítimas.

Este é o momento de irmos ao encontro daquilo que é possível fazer para que haja uma reparação integral da pessoa. A Igreja está disponível, como sabe, para dar estes passos que agora estão ainda em diálogo com as nossas comissões diocesanas, em vista a uma maior proximidade e a vir ao encontro das situações no seu concreto.

O processo não tem sido demasiado lento?

O ritmo que tem tido este processo deve-se sobretudo a uma coisa, é que são muitos os que se estão a pronunciar, por isso é normal que quando há 21 comissões diocesanas, há o Grupo Vida, mais a coordenação central das comissões, e ainda a Conferência Episcopal. É claro, tudo tem o seu tempo, porque tudo isto tem de ser feito de forma refletida, amadurecida, mas tem sempre em vista exatamente o bem da pessoa.

Relativamente à Diocese de Lisboa, não há nesta altura qualquer sacerdote suspeito e suspenso de funções?

Neste momento não. Os casos que houve, como sabe, tiveram o seu processo. Todos, inclusivamente, foram enviados para Roma, para a Congregação para a Doutrina da Fé, que é a instância eclesial habilitada para tratar destes assuntos, que depois nos remeteu a decisão final.

Sínodo sobre a Sinodalidade."É preciso dizer que este foi o momento alto da vida da Igreja do século XXI"

A Igreja está em processo sinodal. Qual é a sua expectativa para a conclusão deste processo, tendo em conta que em outubro vai decorrer a 2.ª assembleia que encerra os trabalhos?

Em primeiro lugar é preciso dizer que este foi o momento alto da vida da Igreja do século XXI. O Papa Francisco é conhecido como aquele que propõe e que nos estimula para uma Igreja em saída, mas acompanha esta dimensão também a esperança. E foi com grande esperança que vimos uma participação maciça, de toda a Igreja Universal, no processo sinodal.

Por outro lado, foi um momento forte de comunhão. Há um ano, quando estávamos em Roma, para iniciar exatamente a primeira sessão, verificámos ali um encontro maravilhoso, que parecia um novo Pentecostes, de pessoas crentes, oriundas de todo o mundo, depois houve uma maravilhosa celebração na Praça de São Pedro.

Para mim, a expectativa deste Sínodo é que é o momento para a afirmação da identidade e da vocação essencial da Igreja, que é ser uma Igreja missionária, que significa que é uma igreja para servir, uma Igreja para o mundo que faz das pessoas a razão de ser do seu operar, a partir de Jesus Cristo e a partir de Deus. Por isso é com grande entusiasmo, com um sorriso nos lábios e com um rasgado horizonte de esperança no coração que olho e me sintonizo com este sinal.

O Papa Francisco é o homem que vai além de qualquer fronteira

Acredita que daqui para a frente este modo de estar sinodal, ouvindo todos, vai manter-se?

Eu acho que sim, e vou dar um exemplo muito concreto: a partir de deste sínodo, quando há uma reunião, seja ela magna ou de mais reduzidas dimensões, é impossível que essa reunião não contemple a necessidade das pessoas se escutarem, se ouvirem umas às outras.

Isto é um pormenor, mas sabe que o Papa Francisco quis que na sala sinodal, aqueles grupos, no desenvolvimento dos seus encontros, passassem por três momentos: um primeiro em que cada um se expressava; o segundo, em que cada um se pronunciava sobre aquilo que o outro disse e que mais o impressionou; e o terceiro momento foi sermos sinodais e formular aqui um caminho, uma proposta. Isto, a partir do Sínodo, está a ser aplicado em todos os encontros que, no âmbito da Igreja, estão a acontecer. Isto é maravilhoso! Porque antigamente estes encontros tinham dois tipos de pessoas, o que oferecia e falava, e o que escutava e recebia. Hoje há esta participação.

Este é um pequeno exemplo que nos diz de que, de facto, há um novo modus operandi dentro da Igreja que tem esta dimensão da sinodalidade.

Mas, também há resistências ainda... Como é que comenta essas resistências?

Não são só resistências, não é? Olhe, mais do que comentar, eu rezo muito pelo Santo Padre, para que o Espírito Santo verdadeiramente nunca deixe de o assistir com aquela força, com aquela resiliência que é própria dos grandes.

Revê-se neste modo de agir e neste exemplo do Papa?

Sim, absolutamente. Se houvesse uma imagem que eu tivesse de usar, diria que o Papa Francisco é o homem que vai além de qualquer fronteira. Consegue chegar a todo o lado, ao coração de pessoas de diversas proveniências e diversas latitudes, e isso é maravilhoso!