A democracia na América
22-01-2021 - 06:26

A democracia deu um importante passo em frente com a eleição de J. Biden. Mas cerca de um terço dos americanos continua a acreditar que ele é presidente graças a uma enorme fraude eleitoral. Para a democracia vencer será preciso reconstruir um território comum onde opiniões diferentes se possam confrontar sem diabolizar o adversário.

“A democracia venceu”, declarou Joe Biden no seu discurso na cerimónia de posse. Uma cerimónia rodeada por uma excecional quantidade de guardas nacionais (polícia militarizada) armados até aos dentes. O discurso de Biden foi um apelo ao fim da desunião dos americanos, mostrando que a democracia é um acordo para discordar – isto é, quem discorda não deve ser um inimigo a abater mas um adversário a respeitar. Ora isto implica algum terreno comum entre quem toma diferentes posições no espaço público.

Esse terreno foi minado por Trump. Mas a tendência vinha de trás: teve a ver com o fim da guerra fria, que deu a muitos americanos uma certa euforia na vitória sobre o comunismo; alguns passaram a considerar que o poderio da única superpotência, os EUA, tudo permitia. Os neoconservadores, que emergiram com Bush filho na presidência e sobretudo com Dick Cheney na vice-presidência, colocaram a força à frente do direito e da moral. O desastre da invasão do Iraque resultou dessa posição; como também aconteceu com usar de tortura contra suspeitos de terrorismo, depois do terrível ataque de 11 de setembro de 2001.

Entretanto, no partido republicano – o partido de Lincoln... – uma fação de extrema-direita foi tomando conta das escolhas de candidatos a vários cargos políticos, nas chamadas eleições primárias. Há quatro anos escolheram Trump para candidato presidencial. Trump ganhou e durante o seu primeiro e único mandato meteu na gaveta o conservadorismo democrático tradicional neste partido. Tudo culminou com o incitamento à invasão do Capitólio, no passado dia 6.

Um triste espetáculo, que só não fez mais do que cinco mortos por mera sorte. Mas foi demasiado para o estômago de muitos políticos republicanos. É o caso de Mitch McConnell, líder da maioria republicana no Senado, maioria que os republicanos perderam nas eleições de 3 de novembro. McConnell levou quatro anos a fazer o que Trump queria, mas mudou finalmente de posição perante o ataque ao Congresso de Washington. Outros importantes políticos republicanos também nessa altura recusaram continuar a ser tutelados por Trump.

Por uma questão de princípio ético ou por mero oportunismo? Só o futuro o dirá. A verdade é que foram relativamente poucos os dirigentes republicanos que, desde o princípio do mandato de Trump, lhe fizeram frente. O caso mais notável é Mitt Romney, que nunca cedeu à política de Trump. Veremos se, fora da Casa Branca, Trump continua a fazer política, fundando um novo partido ou rebentando com o partido republicano.

Agora cerca de um terço dos americanos ainda acredita que Biden é presidente graças a uma enorme fraude eleitoral. E quase metade dos que votaram em Trump está de acordo com o assalto ao Capitólio. Isto passa-se depois de mais de oitenta autoridades judiciais e administrativas terem investigado e concluído não ter havido fraude eleitoral alguma. É irracional, mas é assim.

Quer isto dizer que a nova administração dos EUA terá imensas dificuldades em superar o fosso que separa perto de metade dos americanos da outra metade. Não existem, por enquanto, condições para unir os americanos, não nas preferências político-partidárias, mas na aceitação das regras básicas de uma democracia liberal.

O que Biden poderá fazer será combater as causas de tantos americanos tomarem estas atitudes irracionais e antidemocráticas. Eles estão zangados porque se julgam desprezados pelo poder dos políticos. Aí, a prioridade de Biden terá de ser um combate mais eficaz à pandemia, que Trump durante muito tempo ridicularizou.

Depois, há a frustração dos que veem a riqueza concentrar-se num número cada vez mais pequeno de bilionários, enquanto a pouca riqueza deles estagna ou mesmo diminui. A democracia liberal que Biden defende terá, também, de se preocupar com o excesso de poder do dinheiro nas decisões políticas, seja através do “lobbying” (influenciando os políticos estaduais e federais), seja no gigantesco volume de dinheiro que implicam as campanhas eleitorais. O capitalismo selvagem destrói a democracia liberal.