Rei Carlos III. A monarquia como “parte fundamental de ser britânico”
06-05-2023 - 22:44
 • António Fernandes (correspondente da Renascença em Londres)

A história do dia da primeira coroação em 70 anos.

70 anos depois da última coroação, Londres vestiu a bandeira britânica num fervor patriótico. Sem dormir e à chuva, a multidão pode não ter visto muito mas queria acima de tudo “estar presente”. Os rituais do passado fizeram parte de um presente em que os fãs monárquicos não colocam em causa o futuro.

A coroa saiu do armário e o Rei garantiu querer “servir, não ser servido”, na primeira vez que foi à famosa varanda do palácio na nova condição, muitas horas depois do início do dia para muitos dos presentes.

Era ainda de noite, mas o caminho para junto do Palácio de Buckingham, a residencial oficial do rei, fazia lembrar uma procissão. Pelas ruas desertas, fechadas ao trânsito, milhares andavam já para garantir um lugar na fila da frente, num lento acordar e de banco portátil na mão. Outros, envolvidos em bandeiras britânicas, saiam das tendas onde tinham ficado acampados, tomavam o pequeno-almoço em modo piquenique.

A multidão foi crescendo, na expectativa de ver o rei que, aos 74 anos, é o mais velho da história a ser coroado. Com a circulação em The Mall, a alameda que liga Buckingham Palace a Trafalgar Square, cada vez mais reduzida os presentes foram-se animando batendo palmas quando alguém passava onde o rei passaria mais tarde.

Entre eles estavam três portugueses: Leonor, residente em Londres, e os pais, Teresa e Mário, que viajaram para Londres para a coração. Na luta por um espaço que apareça, será que justifica as horas de sono? “Vale. Esperávamos estar na primeira fila, mas houve quem dormisse ainda menos”, lamenta-se Mário. Para Teresa, “só pelo ambiente geral já vale a pena”. Teresa acredita que a monarquia “cria uma união entre os britânicos e acaba por ser bom também economicamente, para o turismo por exemplo”. Saber de experiência feito? “É uma atracção vir a Inglaterra para ver este ambiente, este merchandising todo”, admite Teresa e Mário segue-lhe o caminho: “para eles é muito importante, e nós gostamos de ver e participar”.

Até porque, diz Mário, é um acontecimento “muito interessante” porque em Portugal “não temos nada que tenha este significado para nós”. Há 10 anos a viver em Londres, Leonor ainda não se deixou contagiar pela febre monárquica, mas “acho que para os britânicos é muito importante, vamos ver se as pessoas também vão ter tanto interesse com o Carlos”. No dia a dia não é um tema recorrente porque, diz, como “vivo num ambiente mais jovem, acho que não ligam tanto à monarquia”.

No caminho de tendas, bandeiras e chapéus britânicos, ninguém personifica melhor essa febre que três amigos que fizeram cinco horas de caminho para aqui estar. A Ray, nem o laço com bandeira falta. Dá a ideia que são monárquicos…”Somos monárquicos, sem dúvida!”, interpõe Janet. Porquê? “ Por tudo isto”, “tradição”, “por toda esta atmosfera “tola” britânica”, respondem à vez.

A terceira resposta é de Liz, o terceiro elemento que até tinha dito que não queria falar. Para Liz, ver o Rei “não tem importância” e vale “muito a pena” estar aqui. Numa altura em que a simpatia pela família real está a diminuir, Janet continua a acreditar que a monarquia tem “um grande futuro”. “Principalmente quando temos a Kate e o William a seguir na linhagem”, prevê Ray, que com segurança diz que “vai continuar”. “Por séculos!”, acrescenta Janet.

Essa também é a opinião de Liz, ainda que ache que “a monarquia vai ter de evoluir”, mas continua porque é “parte fundamental de ser britânico”. Ray, pensativo, intervém: “o Rei é o Chefe de Estado, tem pouco poder mas ainda assim prefiro ter um rei do que um presidente. Nunca sabemos o que vamos ter, e temos de votar a cada 4 ou 5 anos”, enquanto a monarquia, diz, “dá continuidade”.

Ao passar junto a uma família, destaca-se o manto gigante: God Save The King. “Não é este Rei”, dizem. O Rei em questão é George VI, pai da Rainha Isabel II. Uma prova física dessa continuidade e de como o amor à monarquia corre no sangue de muitos.

“Era o Rei, não era?

Contando com a pontualidade britânica, quando os ponteiros se aproximaram das 10h20, a multidão silenciou-se na expectativa de ver o Rei. Ouviram-se os cavalos e a banda, e deu-se uma explosão de alegria. Foi uma passagem tão rápida e com visibilidade tão reduzida para a maioria, que quando o coche passou, muitos olharam para o lado e perguntaram: era o rei, não era?

Afastada do frenesim, Anita, sentada e de coroa na cabeça parece a monarca do seu pedaço de relva. Veio de Oxford, a uma hora de distância, e chegou ao Mall por volta das 5 da manhã. “Somos um grupo de 10, dos 5 aos 82 anos”. O elemento mais velho esteve também na coroação da Rainha Isabel II, em 1953, mas não conseguimos falar com ela porque está na primeira fila. “Não queria perder o Rei por nada”, diz Anita. Já Anita acha que o importante é “estarmos aqui, a atmosfera, fazer parte da ocasião" e que estes eventos, com pompa e circunstância, "é uma coisa muito britânica". Também ela vê com bons olhos o futuro da monarquia, uma vez que Carlos "está no bom caminho" e "toda a gente no mundo adora a nossa família real".

No entretanto, a procissão discreta de Carlos III e Camilla seguiu por dois quilómetros até à Abadia de Westminster, onde cerca de 2200 convidados os esperavam, incluindo Marcelo Rebelo de Sousa e Maciel Vinagre, um madeirense que recebeu a Medalha do Império Britânico por serviços prestados durante a pandemia.

"God Save The King"

“Chego para servir, não para ser servido”. Foi assim que o Rei lançou o mote da cerimónia da coroação, acentuada por 12 músicas escolhidas pelo próprio Rei, incluindo a primeira música em galês a ser cantada numa coroação.

A cerimónia, de resto, piscava já o olho ao futuro. Líderes religiosos no Reino Unido foram convidados a participar, representando a diversidade multi-religiosa no país. Sentados a testemunhar estavam líderes mundiais e lords, mas também heróis do dia-a-dia.

Num ritual altamente coreografado, aperfeiçoado ao longo de quase mil anos, o Rei jurou a sua dedicação à Igreja Anglicana e ao Reino. Saiu dos holofotes momentaneamente, para a unção. Uma tela protegeu o Rei quando o óleo sagrado foi espalhado pelas suas mãos, peito e cabeça, simbolizando o sagrado do poder que tem.

Sentado no trono que o esperava desde que nasceu, Carlos III recebeu a manto real, a esfera e o ceptro. Depois chegou o momento que todos antecipavam, quando a coroa de São Eduardo tocou finalmente na cabeça de Carlos III - uma coroa que é usada pela primeira e última vez na coroação. God Save The King, gritou o Arcebispo da Cantuária. "God Save The King", respondeu a Abadia, num coro que se espalhou pelas ruas.

Seguiu-se a vez de Camila, a rainha consorte. Mal-amada pelo povo inglês pelo seu histórico com o Rei nos tempos em que este era casado com a Princesa Diana, teve também hoje um momento de redenção quando, emocionada, recebeu a coroa na sua cabeça. Junto aos ecrãs gigantes em Buckingham Palace o apoio surgiu com apoios e vivas.

Depois, tempo de voltar à casa de partida. No regresso, uma marcha militar impressionante com quatro mil pessoas sincronizadas ao segundo respirava o alívio da missão cumprida, e o tom passou de solene a festivo. Um caminho que o Rei e a Rainha fizeram no coche de ouro, utilizado em todas as coroações desde 1830.

Em Buckingham Palace continuavam a ver-se tantas bandeiras quanto chapéus de chuva, que caía sem dar tréguas. Depois de mais uma breve explosão de alegria, seguiu-se mais uma hora de espera e The Mall encheu-se até não dar mais. Carlos III chegou à varanda pela primeira vez enquanto rei, e a multidão respondeu à medida que a família real se apresentava, a conta-gotas: primeiro o Rei e a Rainha, depois o príncipe William e Kate, e por fim os seus filhos Charlotte, Louis e George. O Príncipe Harry, em litígio com família, esteve na cerimónia mas não terá sido convidado para o momento emblemático da família.

O Rei saiu de cena e voltou a entrar para um encore que levou a multidão à loucura. Uma vez mais, cantou-se God Save The King e os aviões deixaram as cores da bandeira no céu. Um dia histórico em que nem todos viram muito, mas o importante, já diziam os amigos que fizemos neste caminho, era mesmo estar aqui. Para quem esteve nas ruas, o amor à monarquia é também o amor à condição de ser britânico.