Carta às mães imperfeitas
08-04-2022 - 08:40

Não estou a criar a "família", muito menos a "família perfeita"; estou a educar duas pessoas, duas futuras mulheres livres e senhoras de si. Não, não estou a educar pessoas para obedecer cegamente ao pai ou à "família", até porque depois essa obediência cega pelo pai seria transferida para a obediência cega pelos maridos maridos e para a obediência pelas famílias que formariam. Como em tantas outras coisas, as regras formais acabam por ser formas de prender mulheres. Há que ter sempre cuidado com os fariseus.

Devido às duas últimas crónicas neste espaço, tenho recebido imensos comentários e abraços de mães da minha geração. Os homens que me desculpem, mas, sim, estou só a falar de mães, porque infelizmente são quase sempre elas que estão em casa a cuidar das crianças ou são quase sempre elas que dão o som de retorno às crónicas sobre paternidade. Mesmo quando não são elas a cuidar da canalha, mesmo quando são os homens a cuidar dos filhos, a verdade é que eles, os pais, não falam destes assuntos, não têm uma narrativa para falar em público dos filhos, sentem-se pouco homens ou então sentem que são apenas a roda suplente.

Bom, os tais comentários destas mães revelam sobretudo gratidão, “Obrigado por falares disso, identifico-me muito com o que escreveste”, “obrigado por falares disso sem medo, eu não consigo, janto com o meu filho no sofá e tenho vergonha disso, agora não”. Ter filhos nunca foi tão difícil e uma das causas desta dificuldade está neste constante julgamento a que os pais, sobretudo as mães, são submetidos. Hoje sentimos que existe à nossa volta um caderno de encargos sem fim em relação à educação dos filhos, e esse caderno exige a perfeição. Os pais do passado não tinham, nem de perto nem de longe, esta pressão. Ser bom pai/mãe hoje em dia é um feito que exige o cumprimento de dezenas e dezenas de obrigações que têm de ser alcançadas sem o auxílio da chapada/palmada, sem o auxílio de uma família alargada e com um conhecimento muitíssimo mais profundo da criança. Conhecimento e sensibilidade. Os pais do passado criavam "famílias", nós criamos indivíduos.

No passado, a “criança” era um molde que se replicava em todos os filhos. Os filhos eram educados nesse molde único, funcionasse ou não funcionasse com a criança y ou z. Hoje, reconhece-se que cada criança tem a sua personalidade e sensibilidade, até às refeições. Volto, portanto, ao exemplo inicial desta série de crónicas: às vezes é difícil colocar as duas miúdas a jantar ao mesmo tempo porque uma adora sopa e a outra, com eu, odeia sopa. Portanto, muitas vezes, a miss sopa começa a jantar mais cedo ou come a sopa à parte enquanto eu preparo uma taça de cenouras cruas e tomate para a outra. É o acordo: se não comes sopa, comes cenouras e tomate antes do jantar e depois reforças a salada e a fruta.

Não estou a criar a "família", muito menos a "família perfeita"; estou a educar duas pessoas, duas futuras mulheres livres e senhoras de si. Não, não estou a educar pessoas para obedecer cegamente ao pai ou à "família", até porque depois essa obediência cega pelo pai seria transferida para a obediência cega pelos maridos e para a obediência pelas famílias que formariam. Como em tantas outras coisas, as regras formais acabam por ser formas de prender mulheres. Há que ter sempre cuidado com os fariseus.

E é aqui que quero chegar. As mensagens que recebi de mães da minha geração mostram como muitas mulheres estão presas em narrativas que não foram elas que criaram; são impostas de fora, pela "cultura", pelas "regras", pelo passado. Minhas queridas, se são vocês que estão nesta luta diária que é educar crianças, se são vocês que estão com as mãos na massa e se são vocês que têm esse instinto moral treinado e apurado, então porque é que têm tantas insegurança sobre o que está social, moral e emocionalmente certo na gestão de uma família em 2022? Não são só os homens que estão presos em 1980.