Anna, Nadja e Henrique. Três rostos da “beleza da língua portuguesa” em Kiev
06-05-2022 - 08:45
 • José Pedro Frazão enviado especial à Ucrânia

Já não há professores suficientes na capital para a procura de estudantes que em duas universidades da capital ucraniana escolhem o português como língua estrangeira e, por vezes, mesmo como primeira escolha, à frente do inglês, francês ou alemão. A Renascença observou como está a ser formada uma geração de estudantes especializados em tradução e interpretação que podem fazer a diferença no futuro das relações culturais e económicas entre os dois países.

Nadejda Kozlenko pede ao segurança que abra a porta da Universidade Nacional de Linguística, não muito longe da Embaixada de Portugal em Kiev. Está tudo fechado, as aulas são essencialmente remotas e no dia em que a visitamos nem sequer há atividade escolar. As portas abrem-se para Nadja - como todos a conhecem - para que possamos percorrer os corredores vazios até chegarmos à sala 417 onde está o Centro de Língua Portuguesa (CLP) numa parceria entre o Instituto Camões, a Embaixada e a Universidade de Linguística.

"É o nosso cantinho português", diz Nadja enquanto abre à porta que fica ao lado de um quadro onde está a memória histórica do centro. Lá estão as fotografias das assinaturas de protocolos com a Faculdade de Letras da Universidade do Porto, as visitas dos embaixadores portugueses, o encontro com Luísa Sobral na final da Eurovisão e um conjunto de faces notáveis portuguesas, de Ronaldo a Saramago, de Marcelo a Mourinho, passando pelo "ucraniano" Paulo Fonseca.

A foto mais preciosa mostra o então ministro dos Negócios Estrangeiros com os estudantes do CLP. No dia 10 de Julho de 2017, até Augusto Santos Silva cantou "Uma Casa Portuguesa" que Amália Rodrigues popularizou.

As oficinas da língua portuguesa em Kiev

Não fosse a guerra, este Dia Mundial da Língua Portuguesa seria uma grande festa portuguesa na capital ucraniana. Seria dia de cozinhar bacalhau ou de fazer francesinhas usando as instalações da Escola Internacional de Línguas “Nova Mova” onde Nadja também dá aulas privadas de português a quem quer aprender.

Esta escola privada e as Universidades de Linguística e Taras Schevchenko, o poeta nacional ucraniano, fazem o triângulo do ensino do português em Kyiv onde há aulas todos os dias pelas mãos de Nadja, do leitor do Instituto Camões, Henrique Albuquerque, e da professora Oksana Wronska. São 42 alunos nas universidades a que se juntariam 18 no semestre que começou em fevereiro.

Em regime pós-laboral, Nadja dá aulas a todo o tipo de pessoas interessadas em aprender português.

“Tenho alunos ucranianos casados com portuguesas e vice-versa. Uma aluna dizia-me que queria cantar canções de embalar ao seu bebé em português. Tenho avozinhas com netos em Portugal. Tenho também pessoas que foram a Portugal como turistas e apaixonaram-se para toda a vida pelo país, pelo Atlântico, por tomarem uma bica, comerem um pastel de nata ou beber um vinho do Porto”, conta Nadja, ela própria cheia de saudades de Lisboa.

Em nome da felicidade

Na escola privada, ao longo dos últimos 10 anos, Nadja ajudou a construir a felicidade em Portugal de muitas pessoas que precisavam de entender melhor esta língua em cursos pós-laborais na capital ucraniana.

“Eram pessoas muito motivadas, queriam mesmo aprender português porque queriam ir para lá viver. Alguns começaram por ser simples turistas ucranianos em Portugal. São jornalistas, engenheiros, médicos, que estão felizes em Portugal. Para mim a missão está cumprida. Estou contente, porque contribuí pelo menos para que alguém esteja feliz e tenha uma vida decente. E ouço mesmo alguns dizerem que sentem que Portugal é o seu país”, confessa Nadja, ela própria, com o coração em quatro pátrias.

Nasceu na Moldávia, estudou em Bucareste e em Portugal e trabalha na Ucrânia. Parte da sua família já é portuguesa. Os seus sobrinhos foram ficando e já nasceu uma segunda geração em Portugal. Agora Nadja vai sobretudo aos batizados, como madrinha, depois de ter estado cinco anos como estudante em Portugal. “Ali também me sinto na minha terra”.

Fugir para Portugal

Nadja fala sempre com enorme carinho dos seus alunos. Dedica-lhes poemas e canções como as que compuseram e cantaram nos últimos anos sobre Amália, Aristides de Sousa Mendes ou também Clarisse Lispector. A escritora brasileira nasceu na Ucrânia e a embaixada do Brasil em Kiev gosta de acentuar isso. Na festa da Língua Portuguesa, a representação diplomática brasileira costuma organizar uma mostra de cinema.

Uma dessas estudantes, Anna Kotova , está a terminar a licenciatura e prepara-se para o mestrado em Tradução, previsivelmente já em Lisboa, para onde regressou depois da invasão russa. Já tinha estado na capital portuguesa durante um ano de intercâmbio e por isso este não foi um mergulho no desconhecido.

“Passei as férias de Natal em Portugal, mas o visto expirou. Voltei para a Ucrânia no dia 19 de Fevereiro e no dia 24, ao ouvir as primeiras explosões, regressei com uma viagem em que estive três dias na fronteira com a Polónia. Sabia que vinha para Portugal, tenho aqui o meu namorado, tenho aqui um abrigo. A minha família ficou na Ucrânia numa zona mais ou menos segura”, revela esta jovem que divide o seu tempo entre as aulas à distância e o trabalho no Centro de Acolhimento de Emergência onde traduz um pouco de tudo à chegada de ucranianos a Portugal.

Uma empresa na forja

Anna quer ser tradutora e professora. Com algumas colegas que também estão em Portugal prepara a criação de uma empresa que desenvolva trabalhos de tradução nas áreas económica, politica e cultural. O nome provisório é “A Beleza da Língua Portuguesa” e Anna admite que os planos são grandes.

“Gostaria de contratar mais pessoas e desenvolver as relações luso-ucranianas. Para já criámos um curso de emergência de ucraniano para portugueses”, explica uma das alunas de Nadja no “cantinho de Portugal na Ucrânia” e que agora está completamente integrada na vida portuguesa. Diz mesmo que Portugal é a sua segunda pátria.

O fator Salvador Sobral

Para Anna, como para outras jovens estudantes de português como primeira língua, a vitória de Salvador Sobral foi decisiva. Chegaram à Universidade no mesmo ano em que o cantor português se apresentou em Kiev para arrebatar o Festival da Eurovisão em 2017.

“Confesso que não sabia nada de Portugal, nas aulas de historia nunca nos falaram de Portugal. Nem sabia onde estava bem no mapa. Depois perguntei na universidade entre hindi e português, aconselharam-me a escolher português como primeira língua. Gosto de coisas secretas para falarmos sem que ninguém perceba.

Quando ouvi a canção dele, foi um pouco estranho. Lembro-me de sentir ´Uau, esta língua é bonita ! ' e depois acabei por apaixonar-me pelo português e adoro Portugal. Quero seguir a minha vida em Portugal, ficar aqui se calhar a viver”, conta-nos já em Lisboa.

Os alunos de português tentam sobretudo fugir ao inglês como primeira língua, esclarece Henrique Albuquerque, professor nas duas Universidades e leitor do Instituto Camões na capital ucraniana.

“Escolhem o português para fazer alguma diferença. Apenas conhecem o Salvador Sobral da Eurovisão, o Cristiano Ronaldo do futebol, as fotos e os pasteis de nata do Instagram. Não optam pelo espanhol, francês, italiano ou o alemão que é escolhido por muitos na Ucrânia”, diz este professor que antes de lecionar na Ucrânia já tinha ligações àquele país desde 2014.

Procura enorme pelo português

Henrique Albuquerque leciona português europeu e revela que há muita procura pela língua portuguesa nas universidades de Kiev. Só no ultimo ano não aumentou o número de alunos inscritos em português.

“Não havia meios para dar tantas aulas na Universidade de Linguística, não havia professores suficientes. Recentemente saiu um estudo que mostra que o português é uma das principais línguas para o mercado de trabalho ucraniano, como uma das línguas com maior empregabilidade”, conta Albuquerque que admite que a maior fatia do mercado de trabalho com língua portuguesa na Ucrânia é brasileira.

Uma das ferramentas essenciais para o ensino do português aos ucranianos tem sido o conjunto de novas séries produzidas em televisão em língua portuguesa.

“Um dos alunos esteve a traduzir a série '1986' para um trabalho da faculdade. Pedi a um grupo de alunos com muito potencial que traduzisse esse primeiro episodio, porque espero que um dia venham mesmo a fazer as traduções para ucraniano e para português da literatura e artes dos dois países”, explica Henrique Albuquerque que prescreve muitas vezes o visionamento de séries como trabalho de casa.

No cantinho português da Universidade Nacional de Linguística, Nadja usa a Renascença para colocar os alunos a ouvir português. “ Quem pensou no nome dessa rádio… Renascença. Adoro essa palavra. Combina muito bem com este país, com a Ucrânia. Vai haver paz e a Ucrânia vai renascer. Vai ser um país muito bonito e com um futuro muito luminoso”.

Projeto parado devido à guerra

Há muito pouca literatura portuguesa traduzida para ucraniano. Saramago e Camões estão traduzidos, mas faltam mais obras. “ Temos um grande mercado por explorar, mas é preciso fazer algumas traduções para puxar o interesse dos ucranianos”, diz o leitor do Instituto Camões.

A guerra parou um projeto conjunto dos Centros de Língua Portuguesa de Kiev e de Lublin, na Polónia para fazer uma coletânea de contos portugueses com tradução em ucraniano e polaco. “ Mas queremos continuar esse projeto assim que possível”.

Agora em Lisboa, Henrique Albuquerque espera luz verde para regressar à Ucrânia. Gorada ficou a preparação de uma encenação em torno de “Os Lusíadas” que preparava para o Dia Mundial da Língua Portuguesa.

As construtoras da ponte Ucrânia-Portugal

Nadja ficou na capital e é de lá que vai falando com as suas seis alunas que agora praticam o português em Lisboa, Porto ou Albufeira. “Elas estão a cumprir um sonho. Estiveram a aprender para estar em Portugal, para falar com nativos e sentir a beleza da língua portuguesa “, diz Nadja com um misto de alegria e saudade.

“Finalmente vamos ter bons tradutores para traduzir diretamente de português para ucraniano e de ucraniano para português e não através de outras línguas . Temos imensa falta de tradutores e de professores de português. Para mim é um orgulho”, confessa a professora da Universidade Nacional de Linguística.

O desenvolvimento do português na Ucrânia depende das relações político-diplomáticas e culturais que se estabeleçam daqui para a frente. Para tudo isto, diz Nadja Kozlenko, “precisamos destes construtores de pontes culturais, políticas e económicas”.

São estas jovens alunas que poderão ajudar ao diálogo entre os dois países, com impulso sobretudo na área económica, acredita esta professora de português.

“Espero que um dia tenhamos muitos investimentos portugueses, que venham à Ucrânia trazer os bens que Portugal tem para o mundo. Os ucranianos deviam ter acesso ao melhor azeite do mundo, o português. O bacalhau, os queijos, os chouriços, essa parte gastronómica”.

Aulas em tempo de guerra

As aulas já retomaram depois da invasão russa, agora por ligações remotas. No regresso, os estudantes pediram para não falar sobre assuntos ligados à guerra. Voltaram-se para a cultura portuguesa, o vocabulário, as construções gramaticais.

“Assim, os estudantes que ficaram cá assim ficam com a ideia de que estão lá, no Museu dos Coches, a ver os elétricos, a contemplar os azulejos, a visitar o Palácio da Pena. Os que estão cá dizem que querem ver com os seus próprios olhos. Os que estão lá dizem que Portugal é como imaginavam através dos textos . Podem agora abraçar os portugueses e trocar palavras com eles”, diz Nadja.

Em Lisboa, Henrique Albuquerque admite que os estudantes devem viver sentimentos agridoces. “É uma situação negativa, preocupam-se com a família que ficou na Ucrânia. Devem sentir-se um peso para quem as recebe. Mas podem desenvolver o português e ver aquilo que falámos nas aulas. O português delas está a melhorar muito”.

Conta ainda que alguns dos alunos que foram para o estrangeiro confessam o desejo de voltar. “Dizem que a Ucrânia precisa deles. Isso aquece o meu coração. É para isso também que fazemos o nosso trabalho”.