Uma originalidade portuguesa
24-07-2020 - 08:16

A surpreendente proposta de reduzir as idas do primeiro-ministro ao parlamento, para responder a perguntas da oposição, tem uma justificação que também é original: dar mais tempo ao primeiro ministro para ele “trabalhar” (pelos vistos, ir à Assembleia da República é turismo).

Nos tempos do PREC (processo revolucionário em curso) muitos partidários de soluções coletivistas sentiam a necessidade de se demarcarem do comunismo soviético, que já estava desacreditado. Por isso falavam de um socialismo “à portuguesa”, original e alegadamente mais democrático.

Agora, do lado dito socialista, social-democrata e liberal, Portugal oferece ao mundo mais uma originalidade. Partiu do líder do PSD, Rui Rio, a surpreendente proposta de reduzir as idas do primeiro-ministro ao parlamento para responder a perguntas da oposição. A justificação da proposta também é original: dar mais tempo ao primeiro ministro para ele “trabalhar” (pelos vistos, ir à Assembleia da República é turismo).

Com o primeiro-ministro de dois em dois meses a responder no parlamento, limita-se o escrutínio da ação ou omissão governamentais, até porque fica reduzida a intervenção crítica dos pequenos partidos. Qualquer pessoa percebe que nada disto é democrático; por isso numerosos membros do PS e do PSD mostraram-se contra a absurda lei proposta por esses dois partidos. 28 deputados do PS votaram contra e 5 abstiveram-se; e 7 deputados do PSD desafiaram a disciplina de voto e votaram contra.

Recordo que Margaret Thatcher disse que o seu mais árduo trabalho como chefe do governo britânico era preparar-se para a sessão semanal de perguntas do líder da oposição. Perguntas que ela não conhecia antecipadamente e que dispensavam aos dois políticos longos discursos e extensas considerações.

A sessão semanal de perguntas ao primeiro-ministro do Reino Unido, que se mantém, não pode ser transposta para países, como Portugal e muitos outros estados europeus, onde vigora um regime eleitoral proporcional. Mas não seria impossível encontrar para o debate com o primeiro ministro regras regimentais que, na medida do possível, limitassem o palavreado inútil e desprestigiante para a democracia.

Até há semanas não passava pela cabeça de ninguém que a solução fosse a aprovada ontem. Afinal, saiu-nos mais uma originalidade portuguesa, que faz lembrar tempos não democráticos e anti-parlamentares.