Uma pandemia onde as vagas não têm fim
05-11-2020 - 07:00
 • Leslie Godfrey*

O Andrew e a Leslie Godfrey estavam a dar a volta ao mundo num veleiro quando viram os seus planos postos em causa pela pandemia. Foram acolhidos nas Maldivas e, depois, nas Seicheles enquanto ouviam, preocupados, histórias de outros marinheiros que não tiveram tanta sorte.

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Escrevo-vos de um ancoradouro nas Seicheles, tendo acabado de regressar à civilização. Sou americana, mas neste momento não estou a viver nos Estados Unidos. Parti da costa da Califórnia em 2016 para cumprir o maior sonho da minha vida: navegar à volta do mundo. Juntamente com o meu marido e com o gato vadio que nos adotou em 2019 na Malásia, demos por nós no Oceano Índico quando a pandemia começou.

Tivemos sorte. Entrámos em Uligan, nas Maldivas, no dia 7 de março numa altura em que as fronteiras em todo o mundo começavam a fechar. Fomos recebidos por autoridades com máscaras, luvas, óculos, fatos de proteção, desinfetante e termómetros. Sustivemos a respiração, preocupados que nos mandassem embora, como tantos outros países tinham feito, tanto com cruzeiros como com pequenas embarcações de recreio. Relaxámos quando nos carimbaram os passaportes com vistos de 90 dias, mas vimos, horrorizados, as notícias da comunidade marítima dando conta de outros navegadores a tentar chegar a vários outros portos à volta do mundo e a serem afastados de volta para alto mar por navios militares com armas automáticas que lhes negavam, em alguns casos, comida, água, combustível e porto seguro.

Durante o primeiro mês estivemos isolados a bordo do Sonrisa, o nosso barco de 12 metros, guardados por um navio da Guarda Costeira das Maldivas. Não podíamos ir a terra, visitar outros marinheiros no ancoradouro ou desembarcar sem ser para nadar à volta do nosso barco. Demos graças a Deus por nos termos abastecido bem de sementes, produtos secos e enlatados antes de sairmos da Tailândia em janeiro, pois era a única coisa que nos dava alguma certeza de que não morreríamos de fome. À medida que o número de casos positivos aumentava na principal cidade das Maldivas os barcos fornecedores e os ferries entre as ilhas foram suspensos e as entregas de comida fresca tornaram-se mais raras. A população de 400 pessoas de Uligan tentava partilhar o pouco que tinha connosco, mas o calor tropical e a demora na entrega levavam a que a comida chegasse muitas vezes já podre.

Em maio as autoridades das Maldivas perceberam que os marinheiros que recheavam o ancoradouro precisavam de esticar as pernas e deram-nos acesso a uma ilha desabitada com uma circunferência de menos de uma milha, onde pudemos enterrar os dedos dos pés nas areias brancas. Tentámos aproveitar ao máximo, nadando e mergulhando nas águas límpida e pescando em mares férteis de peixe, procurando plantas comestíveis na ilha e fazendo fogueiras na praia.

Mas quando chegámos a junho a época de navegação segura no Oceano Índico do Norte já tinha passado. Começaram os ciclones e os ventos e a chuva forte tornaram instáveis as águas outrora calmas do nosso ancoradouro. Mesmo em tempos normais os veleiros precisam de manutenção e cuidados constantes. As condições duras e a falta de fornecedores significavam que estávamos a gastar as nossas peças sobresselentes a uma velocidade insustentável. Os nossos corpos também estavam a ceder perante a esforço e muitos dos nossos colegas de ancoradouro estavam a enfrentar desafios que os kits de primeiros socorros abordo não conseguiam resolver.

Não nos faltava tempo para pensar. Tendo enfrentado tantas “aventuras” nos últimos quatro anos a velejar pelos oceanos, talvez eu esteja mais habituada a dizer: “Será que vamos morrer aqui?” do que alguma vez esperava, mas esta incógnita geopolítica da Covid deixou-nos mais inseguros do que nunca.

Em julho vimos uma oportunidade. Recorrendo a quarentenas rigorosas, métodos eficazes de rastreio e cooperação comunitária durante o confinamento, incluindo o uso de máscaras e distanciamento social, o arquipélago vizinho das Seicheles tinha conseguido praticamente eliminar a Covid. Eles desenvolveram um sistema para reabrir ao turismo o que nos permitiu solicitar uma entrada. Depois de aprovada, desde que permanecêssemos no mar, ou num ancoradouro remoto durante 21 dias, podíamos entrar.

Era precisamente disto que precisávamos. As Seicheles têm uma indústria naval antiga, com estaleiros maiores, marinas e ancoradouros, todos em plena operação. As ilhas ficam ainda numa rota que é segura nesta altura do ano. Candidatámo-nos, fomos aprovados e depois do necessário isolamento chegámos às Seicheles finalmente livres para passear pelas cidades e vilas, fazer as nossas próprias compras e procurar peças para reparar o veleiro. Estamos agora a aproveitar a liberdade que vem com a possibilidade de poder escolher, uma vez que não estamos impedidos de entrar nem de sair.

E agora?

Enquanto fazemos as reparações necessárias e nos preparamos para velejar de novo, compreendemos que a realidade de velejar pelo mundo também foi alterada pela Covid, talvez de forma permanente. Temos estado a monitorizar cuidadosamente a situação nos destinos onde pretendemos ir a seguir: Madagáscar e África do Sul. O Madagáscar continua fechado e embora a África do Sul tenha aberto as fronteiras às viagens aéreas, outros velejadores que pensavam que isso se aplicava a eles também chegaram aos portos só para ver os seus pedidos de visto rejeitados. Há quem esteja à espera há mais de um mês para receber um visto de turismo ou até que surja uma janela de bom tempo que permita aceder ao Atlântico do Sul.

Não é fácil habituarmo-nos a este “novo normal”. Preparámos esta viagem ao longo de mais de uma década. Deixámos para trás família, amigos e carreiras; navegámos dezenas de milhares de quilómetros de águas selvagens para podermos ver as boabás do Madagáscar e acampar em safaris na África do Sul. É uma pena deixar isso para trás e voltar diretamente para casa. Mas ao mesmo tempo vemos o tempo a passar nos cinco anos que reservámos para atingir este objetivo. Cada dia de atraso torna-se menos provável que consigamos completar a nossa circunavegação antes de o dinheiro, a nossa saúde ou a do barco deram de si.

Como tantas pessoas em todo o mundo, somos forçados a perguntar-nos: devemos parar por aqui, na segurança relativa do isolamento, ou ir em frente e “aprender a viver com a Covid?”


*Leslie Godfrey já completou 19.000 milhas de circunavegação abordo de um Valiant 40 de 1981 chamado Sonrisa, juntamente com o seu marido Andrew e o gato Katherine Hepburn. Podem seguir as suas aventuras em www.oddgodfrey.com.