Um museu de causas para tentar mudar o mundo
27-07-2018 - 10:18

Artista plástico e jornalista, Agostinho Santos quer fazer nascer em Vila Nova de Gaia um museu diferente. Além das suas próprias obras, tem outras de grandes nomes numa coleção que quer mostrar a toda a gente.

“Diz: pára”. Dispara. O quadro pousado em frente ao sofá é contemplado por dois artistas. Jorge Marinho, que o pintou, e Agostinho Santos, também pintor e colecionador de obras de arte que “disparam”.

Os dois paralisam, absortos, diante da imagem de um homem louco pelo desespero, que se debate entre duas armas numa espécie de autoflagelação. Entre uma pistola de plástico apontada à cabeça e um telemóvel de última geração, não restam dúvidas sobre o mais mortífero. A primeira é mero brinquedo. O segundo é uma nova forma de caça, de disparo, de denúncia e um moderno aniquilar da tranquilidade e dos sentimentos. Toda a semiótica dissecada numa breve conversa e é altura de Agostinho Santos voltar ao trabalho.

O pintor torna aos baldes de tinta acumulados no tampo da mesa, às cores primárias e secundárias de uma paleta universal. Em volta, as telas amontoadas, as coleções de esculturas que se denunciam sem falar, as prateleiras onde pousa a mais vasta literatura são sinais de que Agostinho Santos não erigiu apenas um atelier de produção artística, mas um laboratório de ideias. É assim desde que se conhece: um defensor de causas (possíveis), com uma necessidade suprema de ler e transcrever o mundo. Trinta anos ao serviço do jornalismo, muitos mais em favor da arte; duas formas de leitura, de atenção aos pormenores que circunscrevem a realidade humana.

“O pincel é uma arma”

O espólio da sua fábrica de arte é um conjunto de “armas de arremesso” que se insurgem contra as injustiças do mundo. Não têm voz, mas impõem-se pela mensagem: uma cadeira do poder, a representação de um homem que ali ficou até ser reduzido a esqueleto, barbies nuas e maltratadas, que denunciam o flagelo dos sem-abrigo, manifestos em verso sobre o dia da liberdade e vestígios bélicos em escultura para que a guerra colonial não seja esquecida. É entre artefactos agitadores de consciências que irá nascer o primeiro Museu de Causas, que tem por base o pressuposto de que “a arte não é só beleza. Ou, por outra, não é apenas a beleza que nos está diretamente acessível aos olhos. É também a beleza interior”.

Agostinho Santos vê na arte a possibilidade da denúncia, da expressão de causas, mais do que uma mera função contemplativa. "Eu acho que a arte pode e deve ser uma arma utilizada pelos artistas. A arte não é só o objeto decorativo que está nas nossas habitações para condizer com os cortinados ou com os sofás. A arte tem de inquietar. O criador, à partida, tem uma sensibilidade mais apurada do que o cidadão comum e não pode alhear-se das questões que nos envolvem, que inquietam o mundo. Como é que podemos andar sorridentes se saímos de casa e ouvimos notícias na rádio, vemos imagens nas televisões dos refugiados, do que se passa na Palestina, do que se passa na Síria, de tremendas injustiças, empresas a encerrar, pessoas a ficar sem casa?", reflete o antigo jornalista.

O artista não é, portanto, um imitador da realidade, mas um produtor de realidades. Quando Agostinho Santos fez a primeira exposição a brincar, com sete ou oito anos, nos fundos da sua casa, desejava assemelhar-se com o que via, com o que o rodeava. Mais tarde, como a maioria dos artistas, abandonou as artes da imitação e deixou que a criatividade o conduzisse.

A arte contemporânea é um espaço sem limites, sem muros, “um veículo de denúncia, tal e qual como eu vejo o jornalismo”, explica à Renascença. Guerra e paz, violência, conflitos, ruína e pó na tela, na escultura, na fotografia. Picasso é disso exemplo, com a famosa Guernica, que gritava em uníssono com o desespero das vítimas da guerra civil espanhola.

Tentar mudar o mundo

"Quando entrei para a área do jornalismo, achava que ia conseguir mudar o mundo com as minhas reportagens. Dediquei-me de alma e coração a isso, não mudei o mundo, mas tenho consciência de que mudei o dia a dia de muita gente". É este o ideal por detrás do Museu de Causas - Coleções de Agostinho Santos, que inclui duas coleções especiais: a obra do pintor sobre intervenção social e o conjunto de obras que tem de outros artistas.

Nomes como Nadir Afonso, Júlio Resende, Jaime Isidoro, Mário Cesariny, Graça Morais, Júlio Pomar e Valter Hugo Mãe já se juntaram ao “comboio” em que Agostinho Santos quer que “entre muita gente”. A iniciativa foi apresentada em Vila Nova de Gaia, pelo presidente da câmara, Eduardo Vítor Rodrigues, e por Agostinho Santos, no passado 25 de Abril, data simbolicamente escolhida. "Fizemos uma apresentação com cerca de 70 obras de 44 artistas, que corresponde ao número de anos desde a data: 44 anos passaram desde o 25 de Abril", concretiza o artista.

O objetivo não é criar um museu que se situe em Vila Nova de Gaia e permaneça imóvel no mesmo lugar, mas edificar um museu que circule livremente como as ideias: “Pretende-se que o Museu de Causas não esteja dentro de um edifício, mas que seja, antes de mais, uma causa que vá de terra em terra, sobretudo às grandes cidades, onde há os maiores problemas. Temos como objetivo já imediato fazer uma exposição em Lisboa, outra no Porto e também noutras cidades. Já tenho vários convites de terras como Boticas, Seia e Viana do Castelo. E o objetivo também é ir incluindo artistas e obras diferentes.”

"Não vai ser um museu municipal, vai ser um museu nacional, que vai estar sediado em Gaia, mas que vai ao encontro das pessoas", explica Agostinho Santos. O antigo jornalista pretende preencher uma lacuna que diz existir e acredita que não basta que se organizem exposições temáticas em museus. Mobilizar artistas para que reflitam e façam da arte uma arma de arremesso, de rebelião contra um mundo muitas vezes cruel é o ponto de partida para o Museu de Causas. Afinal, a cultura sempre esteve na base de todas as revoluções.