Tróia-Sagres. António cumpriu promessa e para o ano chega ao meio milhão de quilómetros de bicicleta
14-12-2022 - 17:40
 • João Carlos Malta , Eduardo Soares da Silva

A clássica de bicicletas que liga a Península de Setúbal ao Algarve foi ameaçada com multas pela GNR para quem alegadamente a organizava, mas acabou por se realizar sem nada de diferente em relação aos anos anteriores e sem contra-ordenações. A ensombrar o evento, sete ciclistas ficaram feridos por um carro que seguia em contramão. O mentor do passeio de bicicletas diz que, para o ano, está de volta e quer atingir um número mítico.

Foram mais de 30 anos a fazer os 200 quilómetros entre Tróia e Sagres, desde que, em 1990, fez a promessa de fazer de bicicleta aquele percurso. Este ano, a GNR ligou-lhe a avisar que, se continuasse a promover o passeio, incorria numa pesada multa.

António Malvar acabou com a página no Facebook em que o anunciava, mas no sábado, às 5h30, lançou-se ao asfalto pela 33.ª vez e chegou ao Algarve. Foram “só” oito horas de caminho. Sem coimas e sem sobressaltos.

Foi o caminho todo sozinho. Ou melhor, quase sozinho. A esposa seguia-o de carro, e com ele iam também os Pink Floyd que, como quase sempre, o acompanharam nos phones pedalada a pelada.

Quando chegou a Sagres, já passava das 13h30, acabou por encontrar os mais rápidos do pelotão de seguidores que ao longo das décadas se foram juntando a ele para dar corpo a uma promessa que se tornou um fenómeno de popularidade entre a comunidade de ciclistas nacional.

Aos 72 anos, António Malvar mantém um espírito inabalável. O aviso das autoridades para que se continuasse a publicitar nas redes sociais o passeio − pagaria uma multa de 450 euros pela alegada organização do evento, e mais 50 euros por cada participante − não o demoveu.

António nunca quis a responsabilidade pela organização do que apelida de “encontro descomprometido de amigos”, alegando que não conhece a esmagadora maioria dos participantes.

Desativou a página do evento Tróia-Sagres, onde anunciava a data, e está agora preparado para continuar nos próximos anos.

À Renascença, confidencia que não faz ideia de como correu o desafio aos outros participantes, porque “não vi ninguém” pelo caminho. O modo como o vai continuar a cumprir a promessa também já está determinada.

“Vou anunciar a data, porque é o dia em que eu faço. Vou pôr na minha página oficial do Facebook, não na página do Tróia-Sagres que vai ficar inativa pelas razões conhecidas. Mas na minha página pessoal do Facebook vou dizer o que vou fazer. Sou livre de o fazer. Não estamos na China, nem na Rússia. Estamos num país europeu, democrata. Posso pôr na minha página o que eu quiser”, declara.

Em relação a possíveis multas, ao acabar com a página no Facebook, António desvinculou-se, na sua perspetiva, de qualquer responsabilidade em relação aos que fazem o percurso da Península de Setúbal ao Algarve.

Sem multas.... sem problemas

O tenente-coronel Rodrigues, responsável pelas operações da GNR de Setúbal, faz o balanço à Renascença da edição deste ano, e anuncia que naquela zona não foi registado nenhum problema com o trânsito.

“Não houve qualquer incidente a verificar. As pessoas circularam ordeiramente e cumprindo as regras de condução no âmbito do Código da Estrada. Portanto, posso fazer um balanço positivo em termos de segurança da segurança rodoviária”, refere.

Quanto às multas que a GNR ameaçara, caso fossem identificados os promotores do evento, o responsável policial disse que ainda ninguém foi autuado. Não foi identificado nenhum promotor do evento.

Mas então o que mudou na realidade antes e depois da GNR ter feito o aviso a António Malvar e às empresas da área do ciclismo que se associaram ao evento? O tenente-coronel começa por responder usando argumentos que não iam ao encontro da questão: “A intervenção, tal como já referi, tendo conhecimento do número de ciclistas nesta magnitude, a preocupação foi essencialmente para a segurança de todos os utentes da via”.

Perante a insistência na pergunta em relação ao que se alterou, além do fecho de uma página de Facebook, o responsável das operações da GNR de Setúbal repetiu que, além da questão da segurança rodoviária, a Guarda procurou perceber se havia uma organização. No caso de ela existir, teria de respeitar as regras do Decreto Regulamentar nº2-A/2005, no Artigo 7.


O Decreto Regulamentar nº2-A/2005, Artigo 7.º, que a GNR invoca:

Outras actividades que podem afectar o trânsito normal

1 - O pedido de autorização para realização de actividades diferentes das previstas nos artigos anteriores, susceptíveis de afectar o trânsito normal, deve ser apresentado na câmara municipal do concelho onde aquelas se realizem ou tenham a seu termo, no caso de abranger mais de um concelho.

2 - Para efeitos de instrução do pedido de autorização, a entidade organizadora deve apresentar os seguintes documentos:

a) Requerimento contendo a identificação da entidade organizadora da actividade, com indicação da data, hora e local em que pretende que a mesma tenha lugar, bem como a indicação do número previsto de participantes;

b) Traçado do percurso, sobre mapa ou esboço da rede viária, em escala adequada que permita uma correcta análise do percurso, indicando de forma clara as vias abrangidas, as localidades e os horários prováveis de passagem nas mesmas;

c) Regulamento da actividade a desenvolver, se existir;

d) Parecer das forças de segurança competentes;

e) Parecer das entidades sob cuja jurisdição se encontram as vias a utilizar, caso não seja a câmara municipal onde o pedido é apresentado.


“Se houvesse alguém a fomentar algum tipo de organização associada àquele evento, obviamente que isso levaria a uma intervenção, nomeadamente até de identificação dos eventuais promotores, para depois se avaliar a situação em termos de inquérito para ver se configurava ou não uma contraordenação”, explica o tenente-coronel Rodrigues.

Em resumo, nenhum problema em relação ao número de pessoas que se juntam na estrada de bicicleta no caso de não haver organização? “Não há qualquer problema, não há qualquer impedimento, para quem quer passear de bicicleta o faça, desde que cumpra as regras. Agora, o que está aqui em causa também, por outro lado, é um evento desta grandeza. Junta tantas pessoas e se houver algum nível de organização, existem regras e que exigia que as câmaras municipais, e as forças de segurança emitissem o respetivo parecer”, argumenta o responsável policial.

O tenente-coronel Rodrigues concede que, de facto, no terreno o que aconteceu acabou por ser muito parecido com que já se passava nos anos anteriores.” Não houve nada de diferente. Nada mudou em relação aos anos anteriores. Simplesmente houve aqui uma sensibilização por parte da GNR, a quem manifestou nas redes sociais dinamizou o evento para que tal facto poderia eventualmente levar a uma contraordenação”.

Uma contramão que varreu sete ciclistas

Mas se não houve incidentes neste passeio de bicicleta, na zona de Setúbal, o mesmo não se pode dizer mais a sul. O Tróia-Sagres deste ano fica marcado por um carro em contramão que embateu num grupo de bicicletas, ferindo sete ciclistas, um deles com gravidade. Tudo aconteceu perto do local onde ocorre o Festival Meo Sudoeste, na EM 502.

Nuno Pereira, que seguia de carro no apoio a um dos filhos que fazia o percurso, vinha mesmo atrás dos primeiros ciclistas a serem atingidos pelo automóvel conduzido por um homem de 70 anos.

“Íamos numa fila compacta de carros em que iam muitas viaturas intervalados com grupos de ciclistas. A única coisa que eu vi foi uma carrinha Mercedes Classe C a vir direita a mim, e apanhou os ciclistas que que iam à minha frente, que eram três ou quatro. Íamos a 20 quilómetros/hora, e projetou um deles por cima do meu carro”, descreve.

Instintivamente, Nuno atirou o carro para uma valeta. Quando se desviou, o automóvel desgovernado em contramão embateu nos ciclistas que vinham atrás, um grupo bastante mais numeroso e robusto.

“Apanhou um monte deles e rebentou como sete ciclistas, um está em estado muito grave, outro foi evacuado para Lisboa, e os com ferimentos ligeiros”, concretiza.

Nuno diz que o varrimento de ciclistas só terminou com uma guinada para o outro lado da estrada e o carro que seguia em contramão a embater na valeta com um pneu rebentado. “Ficou um rasto de destruição. Muitos não sabiam o que tinha acontecido, ficaram completamente partidos, e a cuspirem sangue”, lembra. “Foi terrível”, acrescenta.

A mesma testemunha disse que o condutor, quando foi abordado por ele, lhe disse que ia a mexer no retrovisor, mas que a polícia argumentou que “desmaiou”.

Nuno Pereira diz que nunca tinha visto nada parecido e já faz o Tróia-Sagres desde 2003. Não acha que se houvesse uma maior proteção policial pela GNR aos ciclistas alteraria o resultado do que aconteceu. Diz que no ano passado, o filho fez 18 mil quilómetros na estrada e que situações destas “são o pão nosso de cada dia”.

“Eu praticamente deixei de andar na estrada, porque de facto as pessoas não respeitam. Os ciclistas são sempre um 'estorvo' e, portanto, não há condições (…) É uma convivência que é praticamente impossível e as pessoas atualmente vão ao volante distraídas com tudo e mais alguma coisa”, crítica.

O major Fernandes, responsável pelas operações da GNR de Beja, diz que a inexistência de vítimas mortais leva a que o processo não siga já para o Ministério Público. “Os lesados têm seis meses para apresentar queixa, só quando a apresentarem é que o processo vai para o Ministério Público para começar com o inquérito. Neste momento, não faremos mais nada porque a lei assim determina”, explica.

Portanto, sem queixa não há processo-crime, haverá um auto de contraordenação por condução em contramão. “Os lesados é que têm de se queixar porque não há um crime público”, acrescenta.

A condução em contramão tem prevista uma multa que pode variar entre os 250 euros e os 1.250 euros.

O major Fernandes diz que este incidente não se deveu a um comportamento incorreto dos ciclistas que seguiam no passeio Tróia-Sagres. “Aqui foi o contrário. Foi o outro senhor que teve culpa, as bicicletas vinham bem. Isto pode acontecer, para não acontecer tinha de ser montado um dispositivo como para a Volta a Portugal em Bicicleta”, avança.

“Aconteceu neste evento com uma organização, que afinal não era organizado, como pode acontecer com qualquer ciclista que fosse treinar ao fim de semana. Ou a um outro carro que fosse naquele sentido da faixa de rodagem”, analisa.

A caminho dos 500 mil

Em relação ao Tróia-Sagres, há uma certeza: vai continuar. E para o ano haverá outro motivo para comemorar. António Malvar vai chegar a um número mítico e redondo.

“Para o ano, é um ano muito especial se eu cá estiver”, começa por dizer o homem de 72 anos.

Porquê? “Tenho outros objetivos e um dos objetivos no ciclismo e na vida é fazer meio milhão de quilómetros de bicicleta e calculo que devo atingir essa marca mais ou menos em dezembro do ano que vem, porque neste momento tenho 488 mil quilómetros. E eu estou a fazer uma média de 12 a 13 mil por ano”, quantifica.

“Daqui a um ano, estarei a fazer a marca de meio milhão e será a junção das duas coisas, cumprir um objetivo de vida e continuar a cumprir a promessa de fazer o Tróia-Sagres”, remata.