​O medo do circo
06-12-2019 - 06:36

Andar de terra em terra com a casa às costas não podia ser sinónimo de conforto, e esse desconforto, aliás, notava-se em todos os gestos e rostos.

Os bilhetes apareciam lá em casa, oferecidos por um amigo que trabalhava na generosa Volvo, e eu tinha de ir. Não se jogavam bilhetes no lixo. Mas a verdade é que eu odiava cada momento. Odiava, porque tinha medo do circo. Um medo que voltei a sentir ao ver agora uma série da HBO, “Carnivàle”. A série conta a história de um circo americano no contexto da Grande Depressão. O argumento parece que foi escrito a meias por Steinbeck e Flannery O’Connor, ou seja, é um relato da miséria que se cruza com um ambiente gótico e místico.

E, de facto, “Carnivàle” mostra bem o lado grotesco do circo que me inspirava medo. Sim, não estou a exagerar, era medo. À superfície, eles, os palhaços e contorcionistas, estavam a fazer proezas esfuziantes, mas no subtexto eu sentia a sua tristeza. Não me ria com as macacadas dos palhaços, porque sentia a tristeza escondida daqueles homens. Como dizia há dias a Mafalda Anjos, directora da Visão, era impossível compreender porque é que os outros riam às gargalhadas. Riam do quê? A tristeza de todo o pessoal do circo era palpável, era palpável no sorriso postiço das acrobatas, era palpável no tom de voz automático e soturno do cicerone, que devia ser a mesma voz que aparecia mais tarde nos carrinhos de choque dos santos populares, era palpável nos animais.

Era grotesca aquela instrumentalização de animais selvagens. Não sou animalista, mas tenho dois olhos e um nariz. A tristeza dos animais era palpável, tal como o fedor da palha encharcada nos dejectos de animais. O cheiro a curral não me faz impressão no contexto do curral, no contexto da manjedoura. Sucede que o circo não está nesse contexto. Aquele cheiro ali é uma pestilência, não uma chamada à humildade. E agora penso noutra coisa que não me ocorria na época: aquelas pessoas eram mais pobres do que eu, tinham uma vida ainda mais difícil do que a dos meus pais. Andar de terra em terra com a casa às costas não podia ser sinónimo de conforto, e esse desconforto, aliás, notava-se em todos os gestos e rostos.

Não fico nada incomodado quando as minhas filhas não procuram esta tradição.