A guerra na Ucrânia e as vozes "dissonantes" na América
26-05-2022 - 00:40
 • Sérgio Costa

​Henry Kissinger surpreendeu ao deixar entender que a solução para o conflito na Ucrânia passa pela cedência de Kiev aos interesses de Moscovo no leste ucraniano. Uma visão que parece contrariar a linha oficial da Casa Branca, mas está alinhada com outras vozes de relevo da política norte-americana. Um pensamento que, afinal, pode não estar muito distante dos reais objetivos de Washington.

A voz rouca, cansada dos 98 anos, obriga a um discurso lento, pausado, mas não afasta a controversa certeza do seu pensamento. É de Henry Kissinger, antigo secretário do estado norte-americano, o mais recente e inquietante apelo sobre o conflito na Ucrânia: "o Ocidente deve evitar aplicar uma derrota pesada à Rússia, pois teria efeitos desastrosos na estabilidade da Europa".

No Fórum Económico Mundial em Davos, na Suíça, o antigo chefe da diplomacia de Washington pediu o fim do conflito e sublinhou a urgência de negociações de paz. Negociações que “idealmente devem ter como linha divisória o regresso ao status quo anterior”, acrescentou.

As análises confluem: Kissinger estará a defender que os líderes mundiais devem convencer a Ucrânia a ceder território à Rússia para possibilitar um acordo de paz. O ex-secretário de estado dos EUA acrescenta mesmo que arrastar o conflito “não seria pela liberdade da Ucrânia, mas promoveria uma nova guerra contra a Rússia", pedindo aos ucranianos sensatez igual ao heroísmo demonstrado ao longo de três meses.

Exigia-se, aqui, um esclarecimento imediato sobre estas frases, mas um regresso a 2014 poderá contribuir para uma clarificação. No momento em que tanques russos selavam a anexação da Crimeia, a “velha raposa” da diplomacia norte-americana defendia, num artigo publicado no Washington Post, que "à Ucrânia importa não uma satisfação absoluta, mas a insatisfação equilibrada”.

A palavra cedência parece encaixar permanentemente no discurso. Como se percebe, a tese defendida em Davos não é recente, e Kissinger é apenas uma entre muitas relevantes vozes norte-americanas a alinhar por uma solução que choca com análises imediatas do conflito.

Há um coro considerável de respeitáveis vozes norte-americanas aparentemente dissonantes com a linha oficial sobre o conflito na Ucrânia e, sobretudo, sobre a expansão da NATO para o leste europeu.

Em 1997, Jack Matlock Jr, ex-embaixador dos EUA em Moscovo entre 1987 e 1991, sublinhava como inaceitável qualquer expansão da Aliança Atlântica para territórios do defunto Pacto de Varsóvia, classificando esse movimento como “o mais profundo erro estratégico desde o fim da Guerra Fria”, e que não havia “nenhuma necessidade de expandir NATO”.

Quase uma década depois, Robert Gates, secretário de Defesa dos EUA nos governos de George W. Bush e Barack Obama, escreveu na sua autobiografia “Memoirs of a Secretary at War”, de 2015, que "tentar trazer a Georgia e a Ucrânia para a NATO foi verdadeiramente uma provocação.”

Gates considera que o Ocidente não se apercebeu da humilhação que o fim da União Soviética representou para os russos e como isso foi motor de ressentimento em Moscovo.

Os alertas continuaram. Na véspera da invasão da Ucrânia pelas tropas de Putin, o economista norte-americano Jeffrey Sachs, escrevia no Financial Times que a irredutível vontade de alargar a esfera de influência da NATO é, para além de um equívoco, um risco. Não escassearam alertas sobre a provável reação violenta de Moscovo.

Como enquadrar este, para muitos, surpreendente pensamento de personalidades destacadas nos Estados Unidos? Talvez na escola do realismo político norte-americano.

A investigadora Sandra Fernandes, baseia a sua análise com o olhar de Washington sobre a Pequim, defendendo que "Kissinger entende ser necessário preservar a relação com a Rússia, como passo fundamental para conter a China". Será um reflexo de "uma visão muito americana do mundo, uma visão em que a China é o principal desafio aos EUA", acrescenta a professora da Universidade do Minho para quem a opinião de Kissinger não será, afinal, verdadeiramente dissonante.

Já Germano Almeida lembra a tradição de confronto entre duas visões sobre política externa nos Estados Unidos. Um conflito entre o pragmatismo/realismo e uma tradição mais clássica de uma América mais imperialista e que terá na administração Biden uma "manifestação mais suave". O especialista em política norte-americana assinala, contudo. um dado curioso: com a saída do Afeganistão, Biden "parecia querer reduzir custos e concentrar-se em questões internas", mas com a invasão da Ucrânia, o atual presidente dos Estados Unidos encontrou uma oportunidade para demonstrar que Washington ainda pode ter um papel relevante no palco internacional, o que "constitui um recuo na política recente", assinala.

Já sobre as palavras de Henry Kissinger, Germano Almeida acredita que o ex-chefe da diplomacia norte-americana considera que o tempo de Washington de influenciar e determinar a vida de outros países chegou ao fim. E este pode ser o elo de ligação entre o pensamento de Kissinger e os objetivos da atual administração. Para Germano Almeida, a Casa Branca estará consciente de que a Rússia não tem forma de acomodar uma humilhação militar e que, por isso, a posição da administração Biden sobre o conflito na Ucrânia "pode não estar esgotada".

Kiev, recorda o analista, está a receber um significativo apoio norte-americano, 40 mil milhões de dólares, o que se traduz na maior intervenção de uma administração norte americana num conflito militar desde a segunda guerra mundial. Nesse sentido, Germano Almeida considera "haver sinais de que "Biden pode querer levar Zelensky à mesa das negociações para eventualmente ceder" nas pretensões russas no leste ucraniano. A moeda de troca estará no apoio financeiro. O efeito prático, adianta, "será o de uma vacina", e assim os americanos acreditam que "o vírus russo não atacará de forma semelhante noutros territórios". O crucial, conclui, foi o facto de a Rússia não ter tido um sucesso retumbante no início da intervenção militar na Ucrânia. Biden estará, afinal, a concordar com Kissinger.

Diferente é a análise de Sandra Fernandes para quem essa solução "resultaria no passado", lembrando a complexidade do momento que vivemos, para acrescentar que "se isso acontecer (a cedência de territórios da Ucrânia à Rússia), vamos ter imensos retrocessos sobre aquilo que tem sido a evolução no continente europeu, da própria União Europeia, dos valores liberais", acentua. "A Guerra Fria acabou e o direito internacional, os direitos humanos, o respeito pelas soberanias e a ilegalidade da alteração de fronteiras por recurso à força têm vindo a afirmar-se como princípios do funcionamento internacional", conclui.

Só o fim do conflito poderá esclarecer se subsiste o realismo ou uma visão mais idealista em que prevalecem os valores que julgamos, ainda, garantidos.