​Guerra das Estrelas: uma história bíblica
05-01-2018 - 06:19

De Matrix a Harry Potter, passando pelas sacrossantas Guerra dos Tronos e Guerra das Estrelas, é difícil encontrar um filme ou série de massas sem os dois pés na simbologia cristã.

Muito boa gente revela desinteresse pela Bíblia, porque parte do preconceito de que as sagradas escrituras são apenas para olhos crentes. Nestas cabeças preconceituosas, a Bíblia é uma mera bula medicinal da missa. É um erro grave.

Revelar desinteresse pela Bíblia é o mesmo que desprezar Shakespeare ou Nietzsche. Aliás, é pior do que desprezar Shakespeare ou Nietzsche, porque a Bíblia não é um livro de um autor, é uma biblioteca de dezenas de autores que resume dois mil anos de pensamento e literatura. E esses dois mil anos impressos naquele papel sedoso continuam a ecoar, continuam a ser o pilar central da nossa cultura. Por outras palavras, não ler a Bíblia é uma automutilação intelectual.

Ter orgulho em dizer que não se lê a Bíblia é o mesmo que dizer com ar ufano que não se lê a Odisseia ou Hamlet. Com ou sem fé em Cristo, um leitor sério tem de passar pela Bíblia se quiser compreender a nossa cultura. E não estou a falar apenas da cultura erudita. A cultura popular ainda hoje é uma filha dilecta da paisagem e das personagens bíblicas. De Matrix a Harry Potter, passando pelas sacrossantas Guerra dos Tronos e Guerra das Estrelas, é difícil encontrar um filme ou série de massas sem os dois pés na simbologia cristã.

Olhe-se, por exemplo, para a Guerra das Estrelas, que tem o seu VIII episódio nos cinemas. Não se compreende esta saga sem a ideia cristã de encarnação, isto é, a noção de que o Criador encarna ou escolhe uma pessoa em concreto, um escolhido, um ungido, que tem sempre um perfil improvável. No episódio I, esse ungido é Anakin Skywalker (futuro Darth Vader), um menino de um planeta remoto e desértico (Tatooine), filho de uma mulher escrava. Anakin é gerado de maneira crística, isto é, não tem pai humano; a mãe dá à luz de forma espontânea este escolhido do Criador (“a Força”). Esta evidente citação bíblica no coração da cultura pop volta a ser evidente no actual recomeço da saga, os episódios VII, “O Despertar da Força” (20015), e VIII, “O Último Jedi”, ainda em exibição. A história centra-se agora em Rey, uma rapariga de outro planeta remoto (Jakku). É ela a escolhida. Na grande cena de “O Despertar da Força” (2015), o velho sabre de luz de Luke Skywalker recusa ir parar às mãos de Kylo Ren. O sabre, o símbolo máximo da liturgia Jedi, escolhe como destino as improváveis mãos de Rey. Tendo em conta que a Força escolhe Rey no final de “O Despertar da Força”, a discussão nos últimos dois anos centrou-se na identidade secreta desta personagem. Quem é ela? É ela filha de Luke da mesma forma que Luke é filho de Anakin? É irmã de Kylo Ren, isto é, filha de Leia Skywalker? A conversa centrou-se assim no pedigree, nos alegados galões genéticos e aristocráticos de Rey. É caso para dizer que os fãs de Guerra das Estrelas (eu incluído) não aprendemos nada; não prestámos atenção à saga e, já agora, aos Evangelhos.

Neste VIII episódio, após novo duelo, Kylo Ren dirige-se a Rey nestes termos: “tu sempre soubeste a verdade sobre os teus pais; eles eram miseráveis sucateiros que te abandonaram, eles venderam-te. Tu não és ninguém nesta história”. Esta é a arrogância aristocrática de quem se julga portador de um pedigree especial, de quem se julga mais perto da verdade e de Deus (Força) devido ao apelido, devido à alegada grandeza que carrega no sangue (Ren é filho de Han Solo e Leia Skywalker, a realeza da Guerra das Estrelas).

Nem de propósito, ainda há dias falei aqui desta soberba. A lógica do discurso de Ren é a lógica do poder terreno e snobe, a lógica que foi destruída por Deus quando colocou o seu filho a encarnar no corpo de uma miserável de um povo miserável e num local miserável. À partida e em teoria, Jesus também não era “ninguém nesta história” . É claro que a escolhida da Força só podia ser “ninguém”. Tal como Anakin, Rey nasce num planeta remoto e miserável, uma Jerusalém sem o poder das cidades imperiais . Tal como Anakin, esta figura crística é uma filha de ninguém, um serva ou escrava destinada a partir as estruturas do poder do seu tempo.

Não ler a Bíblia é não perceber metade do que se passa à nossa volta. E não falo apenas de filmes.