Como assim o Senna morreu?
03-07-2020 - 06:10

Ayrton não era inconsciente, era corajoso. Ele sentia medo como todos os outros, só que tinha um compromisso visceral e, sim, quase religioso com a ética do desporto em causa e, por isso, esticava o limite mais do que os outros.

Num zapping para entreter o cansaço da prisão domiciliária ainda em curso, encontrei um documentário sobre a vida de Ayrton Senna, “Senna”. Comovi-me. Voltei à meninice num segundo. Nesta coisa das viagens no tempo, poucas coisas são mais poderosas do que Senna e a F1, religião mecânica que deixei de seguir no dia em que ele morreu, 1 de Maio de 1994, embora ainda sinta pele de galinha quando, por acaso, oiço o trovão dos motores numa transmissão de tv apanhada por acaso num café. Como assim o Senna morreu?

Comovi-me, porque apanhei o filme precisamente no momento da sua morte, a curva Tamburello de Imola. Como assim o Senna está morto? E voltei a comover-me ao longo do filme, que puxei para o início na box. Não me lembrava da fé dele. Não admira: a minha meninice foi pagã, aquela fé era para mim um exotismo brasileiro. Agora, aos 41 e convertido, comovi-me com a sinceridade religiosa de um dos meus heróis, um dos meus reis. Eu tento escrever como o Senna guiava, pai, 'tá a ver ou não?

Senna tinha liberdade religiosa do americano; ao contrário do europeu, o americano, seja ele dos EUA ou do Brasil, não se sente ridículo quando expressa em público a sua fé. E reparem que a religiosidade não era apenas uma questão discursiva. A fé tinha uma aplicação prática. Parte da sua grandeza enquanto herói das pistas, algo aparentemente pagão, nascia na sua fé cristã. Se não podemos desligar a beleza dos livros de Flannery O'Connor ou Graham Greene da sua fé religiosa, o mesmo pode ser dito sobre a beleza das trajectórias de Senna. Como assim 'tá morto?

Às tantas, no filme, o seu primeiro arqui-rival, Alain Prost, começa a justificar a sua inferioridade com o alegado fanatismo religioso do brasileiro. O problema de Ayrton, diz Prost, é que ele não tem medo de morrer, julga-se imortal, acredita em Deus e nessas coisas! O cinismo de Prost não podia ser mais francês e moderninho. Ora, Ayrton não era inconsciente, era corajoso. Ele sentia medo como todos os outros, só que tinha um compromisso visceral e, sim, quase religioso com a ética do desporto em causa e, por isso, esticava o limite mais do que os outros. Ele tinha um compromisso com a verdade deste jogo, com a verdade de cada pista, isto é, a melhor trajectória geométrica traçada nos limites da física. A sua fé não se vê na alegada ausência de medo da morte, mas sim nesta constante busca da perfeição, na luta contra o relógio, na procura da geometria, na procura de um estado de consciência tão perfeito que se torna inconsciente, uma segunda natureza, um conhecimento intuitivo da física. Ayrton tornava belas as leis de Newton.

Ayrton era melhor do que Prost, porque o francês era um homem exclusivamente terreno, um homem político que fazia o que era preciso para vencer os homens que o rodeavam. Não olhava para cima, só para o lado. Ayrton não queria saber dos homens que o rodeavam, ele corria literalmente sozinho, contra o tempo, contra o relógio, contra o clima, contra a chuva. O seu adversário era Éolo, não os outros pilotos. Olhava para cima, não para o lado. Com ou sem Prost, com ou sem Lauda, Mansel ou Schumacher, ela procurava a verdade da pista. A energia que emanava de Ayrton, um pulsão que eu sentia em casa numa tv cheia de grão e desfocada, era ele e Deus. Mas como assim ele morreu?