Só o Oregon e a Nova Zelândia levaram a eutanásia a referendo. Isto foi o que aconteceu
22-10-2020 - 10:01
 • Fábio Monteiro

Ideia defendida pela Federação pela Vida não é original, mas é incomum. Eutanásia foi apenas objeto de referendo duas vezes a nível mundial: há poucos dias, na Nova Zelândia, e em 1994, no estado norte-americano do Oregon. Precedentes não são favoráveis às intenções do PSD, CDS-PP e Chega. Parlamento vota proposta de referendo esta sexta-feira.

A Assembleia da República prepara-se para debater e votar uma proposta de referendo sobre a legalização da eutanásia e/ou suicídio assistido, uma iniciativa que é apoiada pelos partidos da direita portuguesa à exceção do Iniciativa Liberal e que encontra eco na Igreja Católica.

A Federação pela Vida entregou no Parlamento, em junho, uma petição com mais de 95 mil assinaturas para que proposta de referendo fosse discutida. Esta quinta-feira, em entrevista à Renascença, o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa assumiu que referendar o tema é "a via que falta percorrer" após o chumbo da eutanásia por uma maioria dos deputados em 2018.

Desta vez, a proposta de referendo deverá ser igualmente chumbada, dado que PS, BE, PCP e PEV estão alinhados no sentido de voto. O partido de Jerónimo de Sousa, que votou contra a legalização da eutanásia, revelou esta semana que iria votar também contra o referendo por considerar que o tema não deve ser objeto de consulta pública. Os deputados do PS e PSD, que vão ter liberdade de voto, podem baralhar um pouco as contas, mas é pouco provável que haja uma surpresa no final.

A ideia de referendar a eutanásia promovida pelos partidos da direita portuguesa, à exceção da Iniciativa Liberal, não é inédita. E um dos dois casos em que essa ideia foi concretizada aconteceu há menos de uma semana.

O caso neozelandês

Foi apenas no passado sábado, 17 de outubro, que a Nova Zelândia se tornou o primeiro país no mundo a levar a decisão sobre a legalização da eutanásia a votação popular.

Os resultados definitivos só serão conhecidos no próximo dia 30 de outubro. Contudo, várias sondagens que precederam a ida às urnas antecipavam uma vitória ao “Sim”. Jacinda Ardern, primeira-ministra neozelandesa, que nesse dia foi reeleita para mais um mandato, foi uma das defensoras da legalização.

Nessas eleições, Ardern, do Partido Trabalhista, foi reeleita com 49,1% dos votos, deixando a larga distância a principal força política da oposição -- o Partido Nacional, de centro-direita, que ficou em segundo lugar com 26,8% dos votos.

Mas não foi apenas o futuro político da Nova Zelândia que os cidadãos foram chamados a decidir nesse dia. Além do boletim eleitoral, encontraram mais dois, com propostas de referendos à legalização da marijuana para fins recreativos e à legalização do suicídio assistido. (Os resultados oficiais de ambos só serão anunciados na próxima semana, a 30 de outubro, adianta a “BBC”.)

O referendo à eutanásia na Nova Zelândia é vinculativo, ou seja, para que possa ser implementado terá de receber, obrigatoriamente, mais de 50% dos votos. A questão colocada foi: “Apoia a implementação da Lei de Escolha do Final de Vida 2019 (End of Life Choice Act 2019)?”

Caso o “Sim” ganhe, a proposta tornar-se-á automaticamente efetiva no prazo de 12 meses.

A legislação permitirá a eutanásia para doentes terminais, com menos de seis meses para viver, de acordo com diagnóstico médico, num procedimento que necessitará também do consentimento suplementar de dois clínicos.

Duas tentativas depois

O início da discussão sobre a eutanásia na Nova Zelândia data de 1995. Nesse ano, o Projeto de Lei Morte com Dignidade (“Death With Dignity Bill”), proposto pelo Partido Nacional, arrecadou apenas 29 votos favoráveis de 120 representantes no Parlamento. Já em 2003, uma nova tentativa com o mesmo diploma fracassou por uma margem muito mais reduzida: 60 votos contra 58 favoráveis.

A Lei de Escolha de Final de Vida 2de 019, referendada há poucos dias, nasceu em 2015. David Seymour, líder do partido liberal de centro-direita ACT, foi o proponente.

“Ouvi os neozelandeses falarem sobre as suas experiências, de Kerikeri a Gore. A maioria disse-me: ‘Já vi uma má morte. Quando chegar o meu momento e não estiver bem, quero poder escolher. É uma escolha minha, de mais ninguém’”, afirmou, no ano passado.

O projeto de lei de Seymour foi votado, por três vezes, no Parlamento, mas para passar todas as fases foi necessário fazer cedências. Por exemplo: para o diploma ter o seu voto favorável, o partido populista Nova Zelândia Primeiro exigiu que a iniciativa fosse a referendo.

À imagem de António Costa e Rui Rio, Jacinda Ardern, primeira-ministra em funções, e Judith Collins, líder da oposição, têm uma opinião favorável sobre a legalização da eutanásia. "Embora existam uma série de crenças fortemente enraizadas e as pessoas tenham o direito de defendê-las, quero também que as pessoas tomem suas próprias decisões individuais", defendeu Ardern, em 2019.

Em 2018, um estudo levado a cabo por Jennifer Young, investigadora da Universidade de Otago, compilou todos os resultados de sondagens sobre a eutanásia no país e concluiu que 68% apoia alguma medida de auxílio à morte assistida, somente 15% eram intransigentes e estavam contra.

“Tradicionalmente, na Nova Zelândia, não levamos a referendo assuntos morais. Costumamos resolver essas situações por via de votos de consciência no Parlamento", diz Neale Jones, ex-assessor do partido Trabalhista neozelandês, em declarações à Renascença. A exigência do partido Nova Zelândia Primeiro, porém, teve de ser atendida, lembra.

Confiante num resultado positivo do referendo, diz que "houve um debate público decente. Se for bem-sucedido, que é o que as sondagens indicam, é muito provável que seja utilizado como modelo no estrangeiro.”

O testemunho de Seales

A história da legalização da eutanásia na Nova Zelândia está entrelaçada com a de Lecreatia Seales. A advogada, que trabalhou como assessora de dois primeiros-ministros neozelandeses e faleceu em 2015, lutou durante anos pela legalização da eutanásia e do suicídio assistido no país.

Em 2011, Lecreatia Seales foi diagnosticada com um tumor no cérebro. Após três anos de tratamentos sem sucesso, de acordo com um testemunho do marido, Matt Vickers, no jornal britânico “The Guardian”, veio a aceitar que “a morte era inevitável”.

“Não tenho medo de morrer, mas fico petrificada de pensar o que me pode acontecer no caminho para a morte”, confessou a advogada. “O meu maior medo é o que o meu marido tenha de vir a ter de lidar com uma esposa louca, como o Sr. Rochester na Jane Eyre. No que me toca, se chegar a um ponto em que já não consiga comunicar ou reconhecer o meu marido, para todo o efeito então já estarei morta.”

Lecreatia Seales processou o Estado neozelandês, exigindo o direito de ser ajudada a morrer. O processo durou pouco tempo, mas, quando o veredito saiu, já a advogada estava presa a uma cadeira de rodas e “em rápido declínio”. A resposta judicial foi negativa, mas a discussão sobre a eutanásia nunca mais abrandou. A advogada morreu no dia seguinte a ser conhecido o acórdão.

As vozes contra a legalização

Se Ardern está a favor, há também vozes de destaque contra a legalização da eutanásia na Nova Zelândia. O ex-primeiro-ministro Bill English, do Partido Nacional, que é católico praticante, está contra, tal como John Tamihere, co-líder do partido Mãori (indígena), e Maggy Barry, ex-ministra pelo Partido Nacional.

Os que se opõem à medida alegam que a legalização irá impactar, maioritariamente, famílias de baixos rendimentos e pessoas vulneráveis socialmente – alguns estudos indicam que são as pessoas com mais estudos e mais idosas que tendem a procurar a eutanásia e o suicídio assistido.

Num artigo de opinião publicado no jornal “Stuff”, Bill English defendeu que a “Lei de Escolha do Final de Vida 2019” não acautela medidas de prevenção contra casos de coerção. “Falem com qualquer médico e eles irão dizer-vos que é que virtualmente impossível detetar traços subtis de coerção emocional, ou mesmo coerção declarada.”

Maggy Barry reiterou publicamente uma posição semelhante. Segundo a representante política, cerca de 70 mil idosos são negligenciados e maltratados por ano, e que a coerção é “muito difícil de detetar”.

Oregon: o caso sem precedentes nos EUA

Em 1994, o estado de Oregon, nos Estados Unidos da América, tornou-se o primeiro a legalizar o suicídio assistido por via de um referendo. A Lei da Morte com Dignidade (Death With Dignity Act) foi a votos a 8 de novembro de 1994 e o “Sim” ganhou com 51.31% (627, 980), enquanto o “Não” ficou-se pelos 48,69% (596,018).

Passou, então, a ser legal para doentes terminais – cuja esperança de vida não seja superior a seis meses, de acordo com o parecer de um médico - obter uma receita para uma dose letal de medicação que, caso ingerida, leva à morte. Os pacientes têm de ser maiores de idade, estar conscientes e apresentar um pedido reiterado, por duas vezes de forma verbal e uma terceira, por escrito, diante de uma testemunha.

Apesar do resultado positivo logo no primeiro referendo, a implementação do suicídio assistido no Oregon foi sempre muito contestada. E por duas vezes, esteve no limbo.

Primeiro, a 4 de novembro de 1997, foi levado a cargo um segundo referendo que visava repelir a Lei da Morte com Dignidade – mesmo depois de o Supremo Tribunal dos EUA ter aberto o precedente, no caso Washington v. Glucksberg, de que ninguém podia ser processado por auxílio ao suicídio. Os resultados desta votação foram menos ambíguos: 59.91% dos eleitores (666,275) votaram a favor da manutenção da Lei, contra 40.09% pela rejeição (445,830).

Mais tarde, já em 2006, a Lei da Morte com Dignidade foi novamente contestada, desta feita pela administração de George W. Bush, então Presidente do EUA, mas a decisão do referendo inicial foi, mais uma vez, confirmada pelo Supremo Tribunal.

Entre 1998 e 2019, 2.518 cidadãos do Oregon pediram acesso à dose letal, de acordo com os registos oficiais do Estado, mas cerca de um terço nunca chegou a tomar os medicamentos. Apenas 1.657 dos casos sinalizados morreram por ingerir a dose de fármaco vendida legalmente.

No ano passado, 290 cidadãos pediram acesso à dose letal, 188 dos quais a tomaram; 75% tinham idades superiores a 65 anos, 68% tinham cancro, 90% viviam em lares no momento da morte; 99% tinham seguro de saúde.

Em 2011, o caso do suicídio assistido no Oregon foi retratado no documentário “Como morrer em Oregon” (“How to Die in Oregon”), que viria a ganhar o grande prémio do júri na 27.ª edição do Festival de Cinema Sundance.

Atualmente, cinco estados dos EUA têm regulamentada a prática da eutanásia: Oregon, Washington (2008), Montana (2009), Vermont (2013), e Califórnia (2015).