​Ciganos confinados nas rulotes por vontade própria. "Temos medo pelas crianças"
17-05-2020 - 11:10
 • Olímpia Mairos

Em Bragança, vivem em condições degradantes, mas o medo do vírus encerra-os nas caravanas. "Não temos higiene, não temos casa de banho”, diz Dolores, que sonha com uma casa para criar os três filhos. A discriminação que sentem no dia-a-dia é também agora patente no acesso das crianças à escola. Sem internet, estudam por folhas que o professor e a professora levam.

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São cinco famílias ciganas. Vivem em rulotes, no bairro dos Formarigos, às portas da cidade de Bragança.

As condições em que residem as cerca de 20 pessoas, entre adultos e crianças, são degradantes, miseráveis. A chuva intensa que caía, quando a Renascença os visitou, agravou ainda mais a situação, misturando-se aos escombros, amontoados de lixo e lama, ferro velho, cartões, brinquedos e roupas espalhados pelo chão.

O medo do vírus aprisiona-os nas rulotes e obriga à firmeza dos adultos para com as crianças. “Não temos saído daqui. Temos medo pelas crianças. Não temos saído das caravanas. O que é que havemos de fazer? Temos de aguentar”, conta à Renascença Alzira dos Santos, de 67 anos.

No início do mês, o deputado do Chega, André Ventura, demonstrou vontade de propor um decreto de lei para o confinamento especial da comunidade cigana, durante o combate ao surto do Covid-19. A ideia foi repudiada por vário setores da sociedade, sendo que a resposta do futebolista Ricardo Quaresma foi a que mais eco mediático e político obteve.

Máscaras não há, diz a matriarca da comunidade. A única forma de se protegerem passa por “lavar as mãos com água e sabão”. “Eu, desinfetante nunca 'botei'. Era pouco e guardamo-lo para as crianças”, informa.

Alzira sabe que “o vírus é perigoso” e manifesta grande preocupação com a neta de “oito aninhos, que é diabética”. “É difícil manter as crianças na caravana”, afirma, sublinhando que “com esta coisa dos vírus a vida é pior”. “Nós temos medo e os garotos também”, confessa.

António Rodrigues, o marido de Alzira, é doente e já está reformado com uma pensão de 300 euros. Passa os dias entre a caravana e a pequena horta. “Para onde hei de ir? Agora não se pode sair”, assinala, sublinhando que “agora os dias custam muito mais a passar”.

Para se distrair, António conta que, antes da chuva, andou a “plantar umas couves” que alguém lhe deu. “Agora é ver o tempo passar, porque o vírus não nos deixa ir para lado nenhum”.

Os dias são agora mais difíceis

Para Dolores Sofia dos Reis, mãe de três filhos doentes, os dias são agora ainda mais difíceis. “Se era complicado até aqui, imagine agora. Ainda é mais complicado com este vírus. Não temos higiene, não temos casa de banho”, conta, acrescentando que vive na caravana e que tem os pais e os filhos para cuidar.

“Os garotos querem brincar, não podem sair daqui. Não têm computador para estudar e não temos internet. Na televisão passa aquilo muito rápido, não conseguem estudar”, declara.

Dolores afiança que praticamente não têm saído do “acampamento” e que só o fazem quando precisam de ir “comprar as coisas para dar de comer aos garotos”.

“Quando vamos às compras levamos máscara. Uma máscara vale um euro e nós não temos dinheiro para as comprar”, afirma, lamentando que “há muita gente” que os “olha de lado”. “Há gente racista. Somos seres humanos como os outros. E temos de viver como vivem os outros”, atira a cigana de 35 anos. “Se me arranjassem uma casa, eu ia embora, para o bem dos meus filhos”, garante.

Sem computador é difícil estudar

Por perto está o pequeno Américo Anjos. Abriga-se debaixo de um guarda chuva, porque chove com grande intensidade. Tem apenas 12 anos e conta que tem medo que o vírus o “apanhe”. “Tenho medo de ir para o hospital”, diz.

E como te proteges? - perguntamos. “Fico dentro da caravana, brinco, lavo muitas vezes as mãos, mas é muito difícil estar o dia todo fechado”, responde.

Américo anda na escola, mas não tem computador e não pode seguir as aulas. “É tudo mais difícil agora. Estudo por folhas que o professor e a professora trazem, mas é um bocado mais complicado do que quando ia à escola”, conta.

Cansado de estar confinado o pequeno não vê a hora de poder “passear pela cidade e estar com os colegas da escola”.

O desejo de uma casa

Maria Gabriela dos Reis, viúva há três meses, vive com os sete filhos numa garagem emprestada. Vai-se protegendo da Covid-19 como pode, mas as maiores preocupações são mesmo os filhos de 5, 8, 11, 13, 14, 17 e 19 anos.

“Saio só para comprar de comer para eles e tenho de os deixar aqui em casa, porque não consigo tirá-los para fora. Não podem sair”, conta à Renascença.

Gabriela vive com “o rendimento mínimo e com o abono de família dos filhos”. São cerca de 600 euros mensais e o dinheiro não chega para tudo.

“Tenho andado a comprar máscaras e, às vezes, também não é fácil. São muitos meninos. Os mais pequenos usam e tiram. Uma pessoa nem que queira comprar não tem possibilidades”, resigna-se.

A cigana de 36 anos diz-se “uma mãe muito lutadora” pelos filhos e acalenta o desejo de uma habitação, para lhes proporcionar as condições dignas “que merecem, porque é tudo muito húmido e há pouco espaço”.

“Já fui à câmara, para ver se me ajudavam a arranjar casa. Uma renda barata eu poderia pagar”, assegura Gabriela, garantindo que está inserida na cidade e nunca teve problemas com ninguém.

“Os ciganos não são um problema para ninguém”

“Os ciganos não são um problema para ninguém. Há pessoas que pensam que sim. Às vezes, dizem que os ciganos são maus, mas, às vezes, os aldeanos são piores. Os ciganos ajudam as pessoas que os ajudam e os aldeanos, às vezes, não; é ao contrário”, observa.

Desabafos de uma mãe que sente, muitas vezes, a discriminação e, neste tempo de pandemia, vê acentuarem-se as dificuldades. Os filhos que frequentam a escola têm de dividir o único computador que existe e não há meio de ultrapassar este limite.

“Vejo-me mesmo apertada com eles. Um vê pela televisão e outro pelo computador. Só com um computador não consigo. Um faz os trabalhos e os outros têm de estar à espera, mas, depois, também já não conseguem apanhar”, desabafa.

Covid-19 agudiza situação de miséria extrema

Fátima Castanheira é diretora do Serviço Diocesano das Migrações e Minorias Étnicas da Diocese de Bragança-Miranda. Conhece os ciganos como ninguém. Sabe o nome de cada um, a que família pertence, os seus problemas concretos. À Renascença relata que “o vírus veio agudizar a situação de miséria extrema”.

“Estas crianças, que é o que mais nos preocupa com esta pandemia, estão mais isoladas. A escola era o grande apoio que elas tinham. Ali tinham as refeições, onde tinham alguma facilidade de aceder à higiene, à água potável. Agora estão isoladas de tudo, pior que nunca”, assinala.

De acordo com Fátima Castanheira, os ciganos merecem “uma palavra de louvor enorme porque eles têm respeitado, não saem”. “Eles cumprem. Têm andado muito assustados. Estão isolados, estão fechados”, afirma, acrescentando que, quando existe “a necessidade de ir comprar os bens essenciais, usam a máscara”.

“Quando não têm, tentamos arranjar. Têm usado também o gel. E dentro do possível em que eles vivem, fazem por se proteger e protegerem os outros”, garante.

Os bens essenciais são muito importantes nesta altura

A diretora do Serviço Diocesano das Migrações e Minorias Étnicas acompanhou a Renascença neste trabalho de reportagem e levou máscaras para distribuir.

“É a nossa missão, é o nosso trabalho, que parte também da nossa vontade, do risco que, muitas vezes, assumimos e que enfrentamos. As dificuldades são muitas, mas é na dificuldade que entendemos que a nossa missão é mais válida e mais útil”, salienta.

Durante a visita aos ciganos, a Renascença presenciou também a preocupação do serviço diocesano em perceber quais as necessidades mais prementes das famílias, sobretudo a nível de alimentação. Muito discretamente, foi perguntado se ainda tinham “batatas ou azeite”.

“Temos algumas famílias aqui às quais as refeições são dadas através dos refeitórios sociais, mas, agora, como estão aqui, sempre metidos em casa, há a necessidade de cozinhar mais. Eles que, até aqui, não tinham necessidade de confecionar comida em casa, porque não têm condições na caravana, agora têm de o fazer. E os bens essenciais, batatas, azeite, arroz, massa, estão a ser muito importantes nesta altura”, alerta Fátima Castanheira.