Brexit. Como chegámos aqui? E para onde vamos a seguir?
24-11-2018 - 19:00
 • Renascença

No domingo, marca-se o início do fim do casamento entre o Reino Unido e a União Europeia. Mais de dois anos depois do referendo, não há consenso à vista e só uma coisa é certa: a 29 de março, os britânicos vão sair do bloco. A bem ou a mal.

O período de negociação do Brexit está a aproximar-se do fim. Este domingo, os líderes da União Europeia (UE) decidem o futuro do acordo que marcará a saída efetiva do Reino Unido da Comunidade Europeia. A data está marcada: 29 de março de 2019. Mas até lá há ainda muito a fazer.

Os britânicos votaram a favor da separação da UE por uma unha negra em 2016. E mais de dois anos depois, o acordo poderá cair por terra e afastar a primeira-ministra, Theresa May - que, antes de substituir David Cameron na chefia do Governo, era contra a saída.

Sem consenso à vista em Londres, Theresa May vai chegar a Bruxelas no domingo em busca do aval do Conselho Europeu, que estará reunido extraordinariamente para votar o acordo de princípio alcançado pelos negociadores dos dois lados. Depois disso, terá de vencer o Parlamento britânico. E depois voltar à casa de partida, para ter a aprovação do Parlamento Europeu.

Para perceber tudo o que está em causa, comecemos pelo início.

Europa, quero o divórcio

A história começa com David Cameron, então primeiro-ministro. Em 2012, o chefe do Governo tinha rejeitado exigências para que a saída da UE fosse referendada, mas menos de um ano mais tarde, e com as legislativas à porta, prometeu que organizaria a consulta popular se fosse reeleito em 2015.

Mal venceu as eleições, apresentou no Parlamento a Lei de Referendo da União Europeia. Foi o tiro de partida para o processo que está agora a culminar.

No ano seguinte, o ex-autarca de Londres, Boris Johnson, e o então líder do partido nacionalista UKIP, Nigel Farage, entre outras figuras da direita conservadora, lançaram em força uma campanha pela saída, aproveitando o sentimento anti-imigrantes (especialmente os do Leste europeu), anti-regulação europeia e a frustração com as altas contribuições financeiras para a UE. Queriam fazer história, movidos também contra o Governo conservador e de austeridade de Cameron.

Seguiu-se uma corrida renhida entre apoiantes do “Leave” (do inglês, “sair”) e do “Remain” (do inglês, “ficar”). Nasceu a expressão “Brexit”, uma junção entre as palavras “Britain” (Bretanha) e “exit” (saída).

Os autocarros vermelhos anti-UE viajaram por todo o país. A expressão “Vamos retomar o controlo” conquistou os britânicos frustrados com a Europa.

No dia 23 de junho de 2016, os britânicos votaram “Leave”, mas o voto não foi consensual, nem de perto. Inglaterra e País de Gales votaram “Leave” (53.4% em Inglaterra e 52,5% em Gales), mas a Escócia e a Irlanda do Norte votaram “Remain” (a Escócia votou esmagadoramente, com 62% e os irlandeses votaram 55,8%).

No total, a balança pendeu a favor do voto para sair da UE: 51,9% a favor do Brexit e 48,1% contra. Ganhou a angústia anti-imigração, anti-burocracia europeia e anti-contribuições comunitárias.

Estava feita a história. Casado com a UE desde 1 de janeiro de 1973, o país tornou-se o primeiro a saltar fora em potência, após 43 anos de relação íntima.

Afinal não era isto que queríamos

Os resultados fizeram a libra afundar-se nos mercados. Desde 1985, durante o Governo de Margaret Thatcher, que a libra não sofria uma queda tão grande.

David Cameron demitiu-se quase imediatamente e deu o lugar a Theresa May, então ministra do Interior, então contra o Brexit. Boris Johnson, esse, assumiu a pasta dos Negócios Estrangeiros.

Começaram as negociações com a UE, com vista à saída do Reino Unido. No dia 29 de março de 2017, Theresa May acionou o Artigo 50.º do Tratado de Lisboa, que dá às duas partes exatamente dois anos para concretizar o “divórcio”.

Rapidamente se percebeu que o Governo britânico iria ter de ceder em muito se quisesse manter a sustentabilidade da sua economia.

Ou optava por um Brexit “leve”, em que permanecia no mercado único e sem taxas impostas sobre os seus produtos, tendo ao mesmo tempo de continuar a aceitar a livre circulação de cidadãos europeus.

Ou escolhia um Brexit “rígido”, em que teria de se reger pelas leis da Organização Mundial do Comércio e renegociar acordos comerciais com os parceiros da UE para poder reaver o controlo das suas fronteiras, mas vendo ser impostas pesadas taxas aduaneiras sobre os seus produtos.

Foi por esta altura que os economistas alertaram para os “erros” nas contas feitas pela campanha “Leave” sobre as contribuições para a UE, “absurdas” nas palavras de Boris Johnson.

Os mais de 40 anos de pertença à UE custaram aos cofres britânicos mais de 100 mil milhões de libras (113 mil milhões de euros). O acordo agora definido para a saída define que o Reino Unido terá de pagar pelo menos 39 mil milhões de libras (44 mil milhões de euros) por todos os negócios existentes com a UE.

May dá tiro no pé e atira as cartas ao ar

Theresa May começou a ser cada vez mais contestada fora e dentro do próprio Partido Conservador dada a falta de margem de manobra em Bruxelas. Aos olhos dos britânicos, May estava a levar uma tareia na mesa de negociações.

Em abril de 2017, e para reforçar o seu mandato pró-Brexit, convocou eleições antecipadas para 8 de junho. O resultado? Confusão democrática e um desastre conservador. O Partido Trabalhista de Jeremy Corbyn conseguiu crescer consideravelmente no Parlamento e o Partido Conservador perdeu a maioria. May viu-se obrigada a formar coligação com o DUP, o polémico partido unionista da Irlanda do Norte, para manter o controlo da Câmara.

May perdeu efetivamente a maioria, já que o DUP não apoia oficialmente a primeira-ministra. Isto porque o DUP, que defende a permanência da Irlanda do Norte no Reino Unido, vê com receio a possibilidade de passar a haver uma fronteira física com a Irlanda, um dos Estados-membros da UE.

A questão irlandesa

Um dos grandes pontos de interesse do Brexit é a fronteira entre a Irlanda do Norte e a Irlanda. A Irlanda do Norte, protestante, faz parte do Reino Unido há centenas de anos; a Irlanda (ou República da Irlanda), católica, é um Estado independente.

A tensão entre os dois países é histórica. Protestantes e católicos estiveram envolvidos em várias guerras, o IRA (movimento independentista na Irlanda do Norte) foi um enorme problema desde os anos 1970 e o massacre do Domingo Sangrento – em que soldados britânicos mataram protestantes católicos na Irlanda do Norte – sobrevive na memória dos irlandeses.

Não existe uma fronteira física entre os dois países, até porque isto separaria famílias que vivem espalhadas pelas duas Irlandas. A ideia de uma fronteira é impensável.

Surgiu, assim, a solução “backstop”, proposta por May e odiada por quase todos. É um último recurso, que permite à Irlanda do Norte ficar na união aduaneira, leia-se, no mercado único, caso tudo caia por terra e o Reino Unido saia da UE sem qualquer acordo.

Nenhum lado quer uma fronteira física. A UE sugeriu deixar como está a fronteira irlandesa e controlar a fronteira marítima entre o Reino Unido e a Irlanda do Norte. O Governo britânico diz que esta solução mina a integridade e soberania do Reino Unido.

Andando e mancando até ao acordo final

O esboço de acordo técnico negociado por Londres e Bruxelas foi aprovado em Conselho de Ministros a 14 de novembro. Na manhã seguinte, cinco membros demitiram-se do Governo britânico.

Em mais de dois anos de negociações, 19 ministros e secretários demitiram-se do Governo devido a divergências com May relativamente ao Brexit. Algumas das baixas incluíram Boris Johnson e dois ministros com a pasta do Brexit, Dominic Raab e David Davis.

Apesar de tudo, May foi sobrevivendo e apresentou à Câmara dos Comuns o que poderá ser o acordo final, no dia 15 de novembro. Esse acordo define que o Reino Unido irá acabar com a livre circulação de pessoas, serviços, capitais e mercadorias; irá abandonar a Política Agrícola Comum (PAC) e a Política Comum de Pescas; e irá passar por uma transição para suavizar o impacto do Brexit e preparar a economia britânica para uma nova era, delineando acordos económicas que sustentem o mercado interno.

Quanto à Irlanda do Norte, May diz que a questão da fronteira será tratada no futuro e garante que a região continuará a integrar o mercado único europeu, pelo menos para já.

A primeira-ministra admitiu que as negociações não foram um “processo confortável”, mas explicou que este era “o melhor acordo possível”.


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Uma casa desarrumada, uma ameaça de demissão

Se houver luz verde este domingo, Theresa May enfrentará um voto em casa que se afigura muito difícil. O rascunho foi altamente contestado tanto pela oposição como por várias figuras do próprio partido, pelo que uma maioria qualificada de votos está longe de estar garantida.

Jeremy Corbyn, líder dos Trabalhistas, já prometeu que iria chumbar a proposta do Brexit apresentada pela primeira-ministra britânica. A isto acresce o facto de mais de 60 conservadores “rebeldes” terem já dito que não podem votar a favor do acordo se May não assegurar o controlo das águas britânicas. O DUP, por seu lado, também anunciou que iria vetar se o acordo não precaver o livre trânsito entre irlandeses e o não-isolamento da Irlanda do Norte relativamente ao resto do Reino Unido.

Até meados de dezembro, quando se espera que a votação tenha lugar, os leais a May no Partido Conservador terão de fazer campanha junto do próprio partido e dos adversários, para poderem garantir uma maioria.

Caso o acordo chumbe em casa, os votos dos deputados não travam o Brexit, dado que o Artigo 50.º já foi acionado. Com um hipotético chumbo, crescem as possibilidades de o Reino Unido abandonar a UE sem qualquer acordo, isto numa altura em que Theresa May continua a enfrentar exigências de demissão - e que cresce o número de eleitores que querem um novo referendo ao Brexit.

Com ou sem chumbo, o Brexit continua

Há várias opções em cima da mesa para o Reino Unido e a próxima data importante é 21 de janeiro de 2019, caso não haja acordo.

Nesse dia, há duas variáveis: ou Theresa May anuncia que não há acordo e tem 14 dias para apresentar opções à Câmara de Comuns ou não diz nada e tem apenas 5 dias.

As opções incluem: não fazer nada e sair da UE sem acordo; pedir uma extensão do artigo 50.º, que precisa de ser aprovado pelos 27 Estados-membros com unanimidade; convocar outro referendo (May continua a garantir que não o fará); ou tentar nova ronda de negociações.

Se o Parlamento aprovar uma das quatro opções, assim será até dia 29 de março de 2019.

Se chumbar, é provável que May enfrente uma moção de censura, o que no limite conduzirá ao seu afastamento e a novas eleições.

No caso de não-acordo, o que acontece ao Reino Unido?

Se no dia 29 de março de 2019 não houver acordo entre europeus e britânicos, o Reino Unido sai e passa a ser regido pelas regras da Organização Mundial do Comércio e de outras instituições mundiais.

Isto significa que todos os produtos britânicos passam a ser taxados, regulados e verificados como tudo o que é exportado para a UE por outros países do mundo – uma situação idêntica à que os Estados Unidos têm com a UE.

Os britânicos que queiram viajar na UE e os europeus que queiram viajar até ao Reino Unido passam a ter de esperar nas filas para verificação de passaportes.

Além disso, é incerto como ficará a situação dos britânicos que vivem fora do Reino Unido. Com muitos ingleses espalhados pela Europa, nomeadamente em França e em Portugal, Theresa May garante que estes continuarão a ter os mesmos direitos que os europeus e que os europeus que vivem no Reino Unido passarão a reger-se pela legislação britânica.