Parlamento Europeu aprova relatório que refere o aborto como "direito humano"
24-06-2021 - 19:18
 • Renascença

O Relatório Matic não tem valor legislativo, mas recomenda ainda aos Estados-membros limitar a liberdade de consciência dos profissionais de saúde. Especialista em bioética fala de "um dia triste para o Parlamento Europeu".

O Parlamento Europeu aprovou esta quinta-feira o polémico relatório Matic, que recomenda o fim das limitações à prática do aborto nos Estados-membros e ameaça a liberdade de consciência dos médicos.

O documento foi aprovado com 378 votos a favor, 255 contra e 42 abstenções.

O relatório sobre “a situação da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos na UE no contexto da saúde das mulheres” suscitou duras críticas antes de ir a votação e durante o debate no no Parlamento Europeu.

O relatório da iniciativa do eurodeputado socialista croata Predrag Matić, sublinha que o direito à saúde, em particular a sexual e reprodutiva, é um pilar fundamental dos direitos das mulheres e da igualdade de género e apela aos países da UE para removerem todas as barreiras que impeçam o acesso total a esses serviços.

O termo “saúde sexual e reprodutiva” é um eufemismo usado frequentemente por defensores da liberalização do aborto, que o relatório classifica como um direito humano, apesar de não ter sido reconhecido como tal em qualquer dos grandes documentos de direitos humanos no mundo.

Os críticos apontam ainda o facto de a saúde ser uma área de competência nacional e, por isso, consideram que esta tomada de posição do Parlamento Europeu viola o princípio de subsidiariedade, segundo o qual a UE só deve atuar quando a sua ação for mais eficaz do que uma ação desenvolvida a nível nacional, regional ou local.

O relatório considera igualmente que "alguns Estados‑membros ainda têm leis altamente restritivas que proíbem o aborto, exceto em circunstâncias estritamente definidas". E, noutro ponto, insta "os Estados‑membros a despenalizarem o aborto e a eliminarem e combaterem os obstáculos ao aborto legal (...)".

Esta parte do relatório – relativa aos "Serviços de aborto seguro e legal baseados na saúde e nos direitos das mulheres" –, inclui outras referências que podem pôr em causa o princípio de objeção de consciência do pessoal médico, segundo os deputados críticos. Apesar de reconhecer que "por razões pessoais, os profissionais médicos podem invocar uma cláusula de consciência", o texto salienta que "a cláusula de consciência de uma pessoa não pode interferir com o direito do doente ao pleno acesso aos cuidados de saúde e aos serviços".

O relatório lamenta que “por vezes, a prática comum nos Estados‑membros permita que profissionais médicos – e, em algumas ocasiões, instituições médicas inteiras – se recusem a prestar serviços de saúde com base na chamada cláusula de consciência, o que conduz à recusa de serviços de aborto por motivos de religião ou consciência e põe em perigo a vida e os direitos das mulheres".

Ao contrário do aborto, porém, o direito à liberdade de consciência está consagrado em todos os principais documentos internacionais fundacionais dos direitos humanos, onde é descrito como "inviolável".

“Um momento triste para o Parlamento Europeu”

Trata-se de um dia triste para o Parlamento Europeu e para os Estados-membros da UE, afirma a Ana Sofia Carvalho, especialista em bioética, em declarações à Renascença.

Ana Sofia Carvalho recebeu a decisão dos eurodeputados com surpresa, especialmente num momento em que a liberdade de cada país para legislar em matéria de saúde tem sido justificação para a falta de coordenação no combate à pandemia.

Ao mesmo tempo que a Comissão argumenta que “não pode interferir nas políticas de saúde dos Estados-membros”, o Parlamento Europeu aprova uma recomendação transversal aos vários países sobre aborto, lamenta a especialista.

“Que uma questão relativa à saúde – que neste caso nem é saúde, é pôr fim a uma vida em desenvolvimento – seja a primeira questão que o Parlamento vota como uma questão transversal a todos os Estados-membros... Acho que é um momento triste para o Parlamento Europeu e para os Estados-membros”, critica Ana Sofia Carvalho.

"Só uma lei tirânica pode violar a consciência"

O comentador João César das Neves considera que apenas uma lei tirânica pode violar a consciência e que o direito à objeção neste campo é um dos valores fundamentais da civilização.

Sem entrar na questão da licitude do aborto, embora a sua opinião contrária seja bem conhecida, João César das Neves lamenta que os deputados europeus tenham deitado fora um valor básico da democracia.

"Fico sempre espantado com a facilidade com que desaparecem os princípios democráticos e os valores fundamentais da Europa quando temos uma discussão grave dentro do Parlamento", diz.

"Não se pode usar uma maioria pontual para mudar coisas que são valores fundamentais da cultura europeia. A objeção de consciência é um valor fundamental da civilização, não só da cultura europeia, é da civilização. Nós estamos a brincar com estas coisas e amanhã os que estão a fazer isso podem vir a sofrer as consequências, porque amanhã numa maioria contrária a uma coisa que eles apoiem, como violaram as regras básicas da democracia, que é discutir em maiorias pontuais assuntos estruturais, constitucionais."

Apesar de o relatório não produzir legislação, César das neves diz que se trata de "uma violação de um dos princípios mais antigos da civilização, que diz que a consciência está acima da lei, que o último valor é a consciência individual, e que só uma lei tirânica é que pode impor coisas que violem a minha consciência. Agora, em nome de um valor que alguns consideram muito importante e que outros consideram horrível, esse princípio fundamental é deitado fora", lamenta.

[Notícia atualizada às 21h00]