Domingos contínuos
18-03-2020 - 06:33

O problema do Covid-19 está na sua existência, como sombra ameaçadora sobre todos, imune a fronteiras e a bloqueios, galgando países e continentes, imune a raças, credos, géneros, idades, classes sociais, tudo.

Por mais aventureira que a espécie humana seja, as pessoas precisam de previsibilidade e de segurança para conduzirem as suas vidas e para se moverem nas suas rotinas. E mesmo se, ou quando, algo de extraordinário interrompe vidas e rotinas, espera-se que passe, para que tudo volte à normalidade. O que a pandemia do Covid-19, agora declarada e experimentada na vida de cada um de nós mostra não é apenas a possibilidade de virmos a ficar infetados pelo vírus, mas a realidade, bem tangível, de sermos obrigados, mesmo os que estão sãos, a alterar drasticamente hábitos e tipos de vida. E a questão não está em pormenores. Está nas coisas mais importantes: não poder (ou não dever) ir ao trabalho, estar com os colegas, ver a família e os amigos, ir à rua em total liberdade, ocupar-se com as mil e uma coisas que preenchem o dia-a-dia de cada um, ou seja, ter de alterar tudo, sem aviso prévio e de uma forma radical. E ainda não estamos no estado de emergência nacional que, se decretado, obrigará a um isolamento ainda mais restritivo.

O problema do Covid-19 está na sua existência, como sombra ameaçadora sobre todos, imune a fronteiras e a bloqueios, galgando países e continentes, imune a raças, credos, géneros, idades, classes sociais, tudo. Mas está também, se calhar fundamentalmente, na terrível incógnita de ninguém saber quando será domado pela ciência e quando acabará a quarentena. Durará dias? Semanas? Meses? Quanto? Num mundo demasiado seguro de si, onde muitos julgam saber tudo, a impossibilidade de cenarização introduz uma incerteza potencialmente insuportável. E sucedem-se as ironias ou os paradoxos. Países muito poluídos têm hoje o céu mais limpo, porque a circulação de automóveis ou aviões e a própria atividade económica encolheu; e em cidades onde agora se poderia respirar sem máscara…as pessoas andam de máscara. Em padrões de vida onde a regra era correr e acumular, impõe-se agora parar e olhar o básico. Em famílias que apenas se reuniam numa das refeições do dia, o novo desafio é ocupar juntos a esmagadora maioria das horas do dia. E por aí fora.

O estado de alerta, ou de emergência, é próprio de países em guerra ou em violenta revolução. A última vez que uma geração foi mandada ficar em casa e vigilante, com um manual de cuidados básicos, aconteceu na II Guerra Mundial ou, no caso português, nos dias mais dramáticos do PREC. Abaixo dos 50 anos de idade, ninguém, em Portugal, se lembra disto ou alguma vez o viveu. Tudo é novo, incerto, assustador, entre muita e muita desinformação e alarmismo que corre no que ainda corre: a internet e as redes sociais. As teorias da conspiração vão abundar, bem como os profetas do apocalipse, nesta espécie de clima da Peste Negra com wifi em que estamos. Os mais pragmáticos e menos dados ao milenarismo dirão somente que o Covid-19 é um produto da pressão gigantesca que a humanidade tem colocado sobre os seus recursos naturais, e uma estranha forma de o cosmos sinalizar que anda zangado com os humanos que o habitam.

Nas ruas de Lisboa – passa-se o mesmo em todas as grandes cidades de todo (sublinhe-se, todo) o mundo – o trânsito é menor, as pessoas que passam menos numerosas, o ruído menos pesado. Desceu sobre a nossa vida uma espécie de Domingo contínuo, em que todos os dias têm ar de fim-de-semana. Talvez devamos, no muito tempo livre que agora temos (mesmo com o teletrabalho), reler A Peste, de Albert Camus, ou escutar o famoso «Everyday is like Sunday», a música de Morrisey dos anos 80 cujo refrão dizia “Todos os dias são como Domingos / Todos os dias são silenciosos e cinzentos…”