Amor em tempos de peste
27-03-2020 - 06:50

Sou um homem melhor quando permito que as minhas filhas atrasem a minha carreira. Cresço como ser humano. Mas também cresço como escritor. E esse é o paradoxo.

Quarentena com filhos em casa? Bem-vindos ao meu mundo. O meu ano de trabalho a 100% tem oito meses, nove com sorte. O meu compasso é o ano escolar e as férias das miúdas. Atrás de mim, aqui no escritório, está a metáfora visual perfeita desta fusão entre o papel de escritor e o papel de pai: as estantes do meu escritório estão colonizadas por legos, recortes, tesouras, construções de feltro e madeira, tintas, cartas, baús, pincéis, puzzles. Os meus livros, lá atrás, nem se vêem. É como se o caos criativo das miúdas fosse uma hera em redor da árvore. Só que não é uma hera; a hera asfixia e mata. Isto é outra coisa.

Elas não entraram apenas na minha vida, entraram na minha carreira, desarrumando-a, atrasando-a. Pelas minhas contas, iria finalmente acabar até ao verão o meu próximo livro. Agora nem sei se terei tempo de escrita até ao natal. 2020, afinal, não vai ser o ano do meu regresso aos livros. Encaixar esta frustração não é fácil; a minha ambição não cabe na Rua da Betesga. Não cabe, mas tem de caber. Tem de diminuir. Tem de ser congelada, porque essa renúncia é a coisa certa a fazer. Não há amor sem sacrifício. Sem esse sacrifício, só há afecto, que é diferente do amor. Sou um homem melhor quando permito que as minhas filhas atrasem a minha carreira. Cresço como ser humano. Mas também cresço como escritor. E esse é o paradoxo.

Sendo barra pesada, o amor de pai forja-me como escritor. Ao atrasarem o meu ritmo de escrita, as minhas filhas acabam por melhorar o meu material. O “Alentejo Prometido” já tem essa força decantada. Deixem-me ilustrar o que estou a dizer com uma semana padrão. Na segunda-feira, escrevo três páginas de rajada, vou cortando esse texto e, no final do dia, tenho meia página. Na terça-feira, recomeço a escrever mas tenho de ir com uma ao médico, fica em casa dois dias. Na sexta-feira, regresso finalmente ao texto e faço nova arrancada, mais três páginas que depois são cortadas até à dimensão de meia página e, claro, também retoco na meia página que sobrou do trabalho de segunda-feira. Destilar. Apurar. Reduzir. O texto vai ganhando camadas atrás de camadas, nuance atrás de nuance. Quando nos aproximamos de uma pintura, percebemos que o quadro não é só superfície, também tem espessura, a tinta parece barro com um dedo de espessura. É essa espessura, nascida da tentativa e do erro, que dá a beleza ao quadro. Passa-se o mesmo com a escrita.

Muitos amigos e amigas, conhecendo a minha vida, têm pedido conselhos para estes dias. Não tenho conselhos, tenho este percurso que termina com esta ideia estranha: estas duas semanas com elas em casa foram felizes. Quem puder compreender, compreenda.