A lista de Bathily
13-01-2015 - 18:00

Resgatados pela polícia, os clientes da “lista de Bathily” foram agradecer-lhe a vida. Muito provavelmente o seu acto considerado heróico vai valer-lhe agora a Legião de Honra. Mas não voltará às ruas de colar ao peito. No regresso à normalidade será simplesmente mais um muçulmano olhado pelos vizinhos franceses com cautelas acrescidas.

Gostava de lançar o grito de Ronaldo adoptado do Real Madrid (conseguimos!) e aplicá-lo ao medo. Mas é cedo. Claro que a manifestação de Domingo que trouxe para a rua mais de três milhões de franceses é um bom princípio, mas apenas isso. O medo existe e está bem traduzido no facto de um quinto dos meninos judeus terem, ontem, faltado à respectiva escola, de acordo com o relato de um director, apesar da segurança reforçada e da mobilização do exército. Nenhuma epidemia causou alguma vez tal taxa de absentismo.

Compreendo bem os pais dos “faltosos”. Por mais que racionalizemos a necessidade de manter a normalidade há decisões duras demais. Eu própria, em Bruxelas, a seguir ao 11 de Setembro, pensei duas vezes antes de deixar os meus filhos na escola (frequentada apenas por filhos de funcionários da NATO e das instituições europeias e identificada como alvo potencial). Nas semanas seguintes, a preocupação aumentava ao ritmo dos exercícios de simulação de eventuais ataques a que crianças e funcionários tiveram de habituar-se.

O pior é o sentimento difuso de insegurança perante a presença próxima das comunidades de origem muçulmana. Daí o facto de serem elas em rigor, como já aqui escrevi, as primeiras vítimas do extremismo fundamentalista. Daí também a importância da sólida condenação e demarcação dos respectivos líderes religiosos. Os bandidos armados que declararam guerra à nossa sociedade há mais de doze anos e não param de ver crescer a sua esfera de influência, apenas usam abusivamente a capa do Islão, como bem recordou na Renascença o Xeique Munir.

Lassana Bathily é um caso paradigmático. Nascido no Mali, há 24 anos, este muçulmano emigrante em França esteve detido pela polícia durante hora e meia depois de fugir do supermercado judeu sujeito ao ataque terrorista. O funcionário da loja foi primeiro tratado como suspeito de cumplicidade e só depois usado como preciosa ajuda, pela própria polícia, no combate ao sequestrador. Afinal conhecia como ninguém os cantos à casa.

Antes de fugir, através de um elevador, Bathily tinha descido até à câmara frigorifica, seguido de alguns clientes judeus e de acordo com o seu próprio relato, “desligado as luzes e o congelador” e introduzido no interior da câmara os companheiros de fuga com a recomendação de que permanecessem ali, enquanto ele iria tentar sair para buscar ajuda. No andar de cima começara o massacre.

Resgatados pela polícia, os clientes da “lista de Bathily” foram agradecer-lhe a vida. Muito provavelmente o seu acto considerado heróico vai valer-lhe agora a Legião de Honra. Mas não voltará às ruas de colar ao peito. No regresso à normalidade será simplesmente mais um muçulmano olhado pelos vizinhos franceses com cautelas acrescidas. Quando entrar no metro sentirá o desconforto dos companheiros de viagem, se acaso deixar pousada a mochila num banco enquanto se dedica a uma leitura descuidada.

Sofia Lorena no Público de hoje, entre muitos outros jornalistas, dá bem conta da reserva dos jovens de Buttes-Chaumont, o território onde os terroristas do Charlie cresceram em Paris. Ninguém quer falar. E desabafam “ era só o que faltava” a somar aos “chuis” que já visitavam habitualmente o bairro aparecerem agora também os jornalistas.

Os pais da maioria desses adolescentes vieram de mais de meia centena de países diversos, um pouco de todo o mundo, mas muitos deles e os respectivos filhos são já há muitos anos franceses. Nigéria, Argélia, todo o Magreb, Mali estão na história familiar de muitos deles. A maioria não tem trabalho. A vida não é fácil. A exclusão que já existia antes ameaça sair reforçada com os novos episódios de violência.

Não podemos enfiar a cabeça na areia. O gérmen da violência encontra ali bom terreno para crescer. E germinará mais depressa ainda se o deixarmos à solta e não fizermos nada de especificamente agregador para o combater. É urgente não nos fecharmos ainda mais nas nossas pequenas conchas de aparente segurança. Porque não há concha que resista incólume à raiva gerada pela exclusão.

Não podemos pensar que só porque a França é a mais aberta sociedade europeia, e a mais multicultural, não há mais nada a fazer. Pior ainda, não podemos cair no logro de ver razão nos que na Alemanha temem ver reproduzido em casa o que consideram como desastre da política de abertura ao vizinho e por isso reivindicam uma política diferente baseada na exclusão dos emigrantes em nome de uma pretensa ameaça de “islamização do Ocidente”.
 
Há alternativas, mas todas elas passam por acção. A laicidade extrema como política de Estado não facilita e antes afasta da compreensão da importância da crença do outro e a aproximação ao diferente, como bem recordava ainda ontem José Vera Jardim no Falar Claro aqui na Renascença, pode estar aí uma das explicações para o paradoxo de uma sociedade onde abertura e exclusão parecem ir a par. Em França há uma aparente inclusão sem guethos de identificação clara, mas há uma enorme incompreensão e sobranceria face à cultura alheia.

Não há respostas fáceis para saber o que é mais correcto. Não ceder ao medo não implica necessariamente reforçar a provocação, pelo contrário. É essencial consolidar e trabalhar as pontes. Entre os mártires do Estado Islâmico estão muitas centenas de cristãos assassinados, mas estão sobretudo cada vez mais milhares de muçulmanos barbaramente mortos. Basta pensar no que está a fazer o Boko Haram dizimando cidades inteiras e raptando e escravizando as meninas nigerianas que ousam continuar a ir à Escola.