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Igreja das Mercês, Lisboa, 9h30. Muitos jovens de diferentes nacionalidades estão espalhados pelos bancos corridos. Um grupo, junto à sacristia, ensaia cânticos, conversa. Organizada no âmbito da Jornada Mundial da Juventude (JMJ), está prestes a começar uma sessão de duas horas de catequese e reflexão - em língua russa.
Por cima do piano, estão estendidas três bandeiras: do Cazaquistão, da Moldávia e do Quirguistão. Mas dentro da igreja estão presentes jovens de mais nacionalidades. Salvo representantes dos países bálticos, há peregrinos de todas as nações que, em tempos, integraram a União Soviética. Até ucranianos.
Uma das bandeiras em falta é a da Rússia. Uma omissão, porventura, tomada em consciência da conjuntura internacional, pelo que conta Oksana à Renascença. A jovem de 33 anos veio de Moscovo para Lisboa e tem à sua responsabilidade um grupo de 17 peregrinos russos, os únicos inscritos na JMJ.
“Esperávamos ser mais, mas [os nossos amigos] tiveram dificuldades em sair da Rússia, por isso não vieram. Ainda assim, estamos contentes por estar aqui”, diz.
Ciente das tensões geradas pela guerra na Ucrânia, um dos tópicos que o grupo de peregrinos russos discutiu, ainda antes de começar a andar pelas ruas de Lisboa, era se deviam andar com bandeiras da Rússia.
“No nosso grupo, discutimos como nos comportar. Não tivemos nenhum incidente. Até arriscamos a mostrar a nossa bandeira – e isso era uma questão para nós. Foi interessante. As pessoas vieram até nós, quiseram tirar algumas fotografias. Não reagiram negativamente”, conta.
Dentro das Mercês, contudo, a opção dos jovens russos foi outra. Há pelo menos presentes três ucranianos – que integram um grupo de peregrinos vindos da Moldávia.
Segundo Oksana, a guerra na Ucrânia “é uma grande ferida aberta”. “Para a nossa comunidade [católica russa]”, é um grande desafio perceber como podemos viver este período de fé”, confessa.
Não fosse a guerra, a JMJ seria de grande alegria para os peregrinos russos. Afinal, a comunidade católica é uma minoria ao nível nacional: cerca de 1%, segundo as últimas estatísticas.
“Vivemos numa sociedade em que os católicos são uma minoria. E ser capaz de estar no meio de tantos crentes, esta é uma grande oportunidade. E também é muito inspirador. Mas também é um testemunho de estarmos unidos como uma Igreja. Estarmos juntos, especialmente durante estes tempos [de conflito]”, conta Oksana.
Código QR para o Levítico
Clemens Pickel olha com candor para os jovens. Volta e meia, deixa escapar um sorriso. O bispo de Saratov – cidade russa no sul do país – e presidente da Conferência Episcopal da Rússia está mais habituado a conduzir que a ser conduzido, no que toca a cerimónias religiosas.
Todavia, na catequese das Mercês, são os jovens que tomam o leme. São eles que dinamizam a sessão. Um a um, sobem ao púlpito, partilham uma reflexão sobre o Evangelho que serve de reflexão para o dia. Quando chega o momento de partilhar a leitura, um grupo de voluntários faz circular pelos bancos um conjunto de códigos QR.
Para o bispo, é espantoso estar na JMJ em Lisboa. Basta pensar que, “no tempo da União Soviética, era impossível participar em encontros mundiais”. “Hoje tentamos aproveitar todas as oportunidades”, diz.
“Unidos pela língua russa, unidos por Cristo”, os jovens presentes tentam encontrar pontos de partilha, de comunhão de experiência católica. “A experiência de multidão de pessoas [católicas] é muito importante. Pelo menos os russos, estão habituados a ser uma minoria. Na minha cidade [Saratov], por exemplo, apenas 0,08% (22 mil] é que são católicos”, explica ainda.
Na opinião do bispo de Saratov, é importante que o tema da guerra na Ucrânia – “que é importante”, sublinha -, não se sobreponha ao tema da JMJ. “Não viemos aqui para falar de política, mas para estar juntos com jovens de todo o mundo”, diz. “Nós vivemos na Rússia e a vida é um pouco mais que política. Claro que somos pessoas em estruturas governamentais e sociais. Mas somos cristãos. E a nossa vocação é a paz.”
Juntar ucranianos e russos é uma boa ideia?
Divididos em pequenos grupos, munidos com post-its e espalhados pelos vários recantos da igreja, os jovens de diferentes nacionalidades conversam. Uma imagem que deixa o padre Jorge Anselmo, responsável pela paróquia de Santa Catarina, visivelmente contente.
“Quando soube que ia receber as catequeses em língua russa, foi uma surpresa, dado o contexto que estamos a viver. Mas também uma sensação muito boa de poder acolher uma língua que, neste momento, está associada a uma grande dimensão de guerra e violência”, confessa o pároco.
Sozinho num banco junto à sacristia, Markus trauteia uma música. O padre russo, que conduziu de Moscovo até Lisboa em quatro dias, também gosta do que vê. “A organização queria muito que estivéssemos aqui. Eles convidaram-nos. E disseram. A qualquer custo, venham”, conta.
A maioria dos peregrinos russos que estão, por estes dias, em Lisboa, são de Moscovo e de São Petersburgo. Devido às restrições impostas pela guerra, os cidadãos “com passaporte russo têm muita dificuldade em entrar na União Europeia”.
Desde que chegou a Portugal, o padre russo ainda não viu “uma bandeira ucraniana”. “Tenho a certeza que há. Desejo a todos o melhor, claro. Mas não houve encontros.” Ainda assim, especula: “Não sei se os organizadores colocaram propositadamente os grupos de peregrinos [russos e ucranianos] em locais separados. Mas até agora não houve contactos”.
Inquirido se tinha conhecimento que chegou a ser equacionado um encontro entre peregrinos russos e ucranianos na JMJ, dado o conflito, mas que a ideia acabou por cair, Markus diz que não. Mas nota: “É uma ótima ideia.” Aliás, na JMJ de 2016, em Cracóvia, a mesma possibilidade já lhe tinha passado pela cabeça.
“Pensei sobre essa possibilidade. Seria bom? Os conflitos já estavam a acontecer. Em 2014, a Crimeia tinha sido ocupada. Já estava a ferver então. Algo estava a acontecer. Talvez tenho sido melhor que não tenha conseguido. Tínhamos como que 1.000 peregrinos, alguns talvez participassem. Os ucranianos tinham 15 mil pessoas lá. Seria desequilibrado. Conhecer é melhor que não conhecer, claro. Estar em contacto é melhor que não estar em contacto. Mas esta é uma ideia difícil de concretizar”, diz.
Juntos na oração
Uma cartolina gigantesca é colocada junto ao púlpito para que os peregrinos colem post-its. O objetivo é que cada um partilhe algumas palavras sobre o tema da amizade.
Gabriel, um padre que acompanha um grupo de peregrinos da Moldávia, pede aos jovens que pensem no que vão escrever. O homem de 30 anos fala com desenvoltura, alerta que a catequese está prestes a terminar e que, logo de seguida, a missa – também em russo – irá começar. Entretanto, passaram quase duas horas.
Desde o início da guerra na Ucrânia, a Moldávia foi uma das nações que mais recebeu refugiados da Ucrânia; mais de 750 mil atravessaram o país em fuga, perto de 150 mil permaneceram, indicam dados do ACNUR.
“É normal”, portanto, que do grupo de peregrinos da Moldávia, três sejam ucranianos, diz o padre Gabriel. “São jovens, não falam inglês. Um fugiu de Odessa e já perdeu familiares na guerra”.
Mais que a língua russa, Deus “é o elemento em comum” para os jovens presentes, um elemento que “transcende” fronteiras. “Deus é um tema que transcende nacionalidade ou identidade. Deus não tem passaporte”, afirma.
Em todo o caso, é difícil fugir ao conflito. E ao desconforto.
“A organização [da JMJ] tinha-nos colocado a dormir e partilhar espaço com o grupo de peregrinos da Rússia. Por causa dos nossos jovens ucranianos, pedimos para ficar noutro sítio”, revela.
Ou seja, na JMJ, os jovens russos e ucranianos estão juntos em oração. Mas apenas em oração.