O islão e a democracia
02-09-2017 - 09:58

O islamismo não distingue claramente Estado e religião. Um obstáculo à democracia liberal.

Inúmeras vezes foi colocada, nos anos recentes, a questão de saber se o islão seria ou não compatível com um regime democrático liberal. Muitos esperavam uma evolução semelhante à do cristianismo. Durante séculos a Igreja e os Papas detiveram, além de poder religioso, poder temporal. Ora esse tempo foi ultrapassado há muito.

Mas parece que no islão não se esboça sequer uma evolução paralela. Claro que milhões de muçulmanos são pacíficos e decentes. Só que o problema é outro.

O problema não se restringe ao islamismo, embora seja este o mais falado, em grande parte por causa do terrorismo dos radicais, que é rejeitado pelos moderados. Na Índia está no poder central um partido nacionalista. O hinduísmo é claramente apoiado pelo Estado na Índia, contra muçulmanos e cristãos.

E as ditaduras não existem apenas em países islâmicos, como as monarquias absolutas da Arábia Saudita, dos Emiratos Árabes Unidos, etc. No Egipto, depois da queda de Mubarak – um ditador ligado às forças armadas – o país teve um esboço democrático, com eleições ganhas pela chamada Irmandade Muçulmana. Ora, para membros importantes desta organização, a “sharia”, lei religiosa islâmica, devia ser a lei do Estado. “A nossa constituição é o Alcorão”, dizia um desses dirigentes.

Daí que a governação da Irmandade Muçulmana no Egipto tenha sido breve – um golpe de Estado do general Sisi impôs uma nova ditadura militar. Foi um dos grandes falhanços da “Primavera Árabe”, um movimento favorável à liberdade política que irrompeu na Tunísia.

Tunísia, a excepção

Hoje, no mundo muçulmano, apenas na Tunísia vigora um regime político que, não sendo plenamente democrático, é pelo menos moderado e respeitador das liberdades. Importa ter em conta que, após a independência o primeiro presidente da Tunísia, Bourguiba, impôs um Estado laico durante os trinta anos em que mandou no país.

Agora o partido tunisino no poder considera-se “de muçulmanos democratas”, de que não gostam os islâmicos conservadores nem os radicais. Algo de parecido, mas um pouco menos democrático, se pode dizer de Marrocos, onde o poder supremo continua a pertencer ao rei. O mesmo acontece na Jordânia e no Koweit.

E lembremos que, na Argélia, em 1991, houve eleições, ganhas por um partido radical islâmico. Imediatamente os militares argelinos intervieram, anulando as eleições e instituindo a sua ditadura. Seguiram-se doze anos durante os quais se sucederam os assassinatos de uma e da outra parte, numa autêntica guerra civil que terá feito mais de 150 mil mortos. Os militares continuam no poder na Argélia.

A Indonésia é o país onde vivem mais muçulmanos no mundo, mas o Estado é teoricamente laico. O que não impediu que um candidato cristão a governador de Jacarta tenha sido preso. O seu principal opositor proclamava que o islão proibia votar num cristão. Em certas zonas da Indonésia a “sharia” é mesmo aplicada. Na província de Aceh é proibido o álcool, as mulheres têm de se cobrir, o adultério e a homossexualidade são punidos com vergastadas, etc.

A desilusão turca

A mais recente desilusão quanto à democratização política do islamismo é a Turquia. O país, de maioria muçulmana, tornou-se independente após a I Guerra Mundial. Os militares turcos, liderados por Ataturk, impuseram então uma estrita laicidade, proibindo, por exemplo, o véu islâmico nas mulheres. Após décadas de secularismo e de uma democracia manchada por vários golpes militares, em 2003 ganhou as eleições um partido islâmico moderado. O seu líder, Erdogan, foi primeiro-ministro até 2014, altura em que passou a Presidente da República, com amplos poderes.

Ao longo desse período a moderação foi dando lugar a um islamismo autoritário liderado por Erdogan. Houve um brutal recuo nas liberdades cívicas e políticas na Turquia, onde centenas de jornalistas estão presos. Erdogan anunciou que vai repor a pena de morte, que tinha sido abolida por causa das negociações para a Turquia entrar na União Europeia. Uma alegada tentativa de golpe de Estado contra Erdogan, em Julho de 2016, levou a uma enorme repressão que ainda não cessou.

Deve dizer-se que nem sempre as negociações da Turquia com a UE, actualmente suspensas, foram conduzidas com boa-fé da parte dos europeus – vários líderes opunham-se abertamente a receber a Turquia na UE. O que terá contribuído para que Erdogan se voltasse para o mundo muçulmano, desprezando valores ocidentais como a democracia e a separação entre Estado e religião.

Este breve balanço não é encorajador quanto à possibilidade de pelo menos alguns países islâmicos caminharem gradualmente no sentido da democracia liberal. E o grande obstáculo está, porventura, na própria religião islâmica.

Maomé foi um dirigente político, papel que Jesus Cristo recusou sempre, apesar das expectativas dos seus primeiros seguidores israelitas. E o Alcorão não estabelece a distinção que Cristo acentuou quando disse “dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. Daí que a fé cristã hoje conviva sem problemas com Estados laicos, o que não acontece no mundo islâmico. E tudo indica que tão cedo não irá acontecer.

P.S. Esta coluna estará em férias nas próximas três semanas.