Gianni Infantino. O lado tóxico do todo-poderoso do futebol mundial
19-05-2022 - 16:00
 • Fábio Monteiro

Nasceu na Suíça, mas é fã do Inter de Milão. Entrou na UEFA pela mão de Michel Platini e gastou mais de 10 mil euros em colchões (à conta da FIFA). É tolerante com regimes intoleráveis e recebeu, em 2019, das mãos de Vladimir Putin, a Ordem da Amizade da Federação Russa. Quem é Gianni Infantino, o tecnocrata do desporto que lidera a FIFA desde 2016, que não vê problemas de direitos humanos na preparação do Mundial no Qatar?

Diz o senso comum que, às vezes, num momento de aperto, o melhor a fazer é ficar calado. Noutras, admitir o erro. E que negar raramente é a melhor solução. Mas para alguém que nasceu há 52 anos na Suíça, nação com uma tradição histórica de neutralidade e moderação, Gianni Infantino é conhecido por ter um temperamento comedido. Por vezes, apontam os críticos, em vez de emendar a mão, ataca. Ou então minimiza.

O carácter do presidente da FIFA desde 2016, de certa maneira, é mais latino que helvético. O que até faz sentido: nasceu a 23 de março de 1970, em Brig, no cantão de Valais, na Suíça, mas nunca deixou de ser o filho de emigrantes italianos (pouco abastados) que, em criança, fizeram questão de o levar à “catedral” de San Siro. Foi aí que o pequeno Giovanni foi convertido à religião do futebol pela dupla Altobelli e Beccalossi.

É público que o clube de eleição de Infantino – que tem duas nacionalidades, italiana e suíça - é o Inter de Milão, não o (ocasionalmente) europeu Young Boys ou o quase desconhecido Neuchâtel Xamax – equipa com sede bem perto de uma universidade onde Infantino desempenhou o cargo de secretário-geral do Centro Internacional do Centro de Estudos de Desporto.

E se dúvidas houvesse sobre que nação tem a sua fidelidade desportiva, ficaram esclarecidas no final de março passado, após a Itália ter sido eliminada pela Macedónia do Norte no playoff de acesso ao Mundial. “Apetece-me chorar”, admitiu. E lembrou: “Penso nos tempos em que era miúdo, nas emoções de ver o Mundial de 1978 e de 1982, essas são as coisas que nos fazem apaixonar pelo futebol.”

Na semana passada, durante uma conferência em Los Angeles, o presidente da FIFA teria beneficiado de uma postura mais helvética. Confrontado com uma notícia do jornal britânico “The Guardian”, que revelava que mais de 6.500 trabalhadores migrantes terão morrido no Qatar, na preparação para o Campeonato do Mundo, Infantino não tentou conter os danos. Em vez disso, foi displicente: pôs em causa os factos relatados.

“Na construção de estádios para o Mundial (...) foram, na verdade, três as pessoas que morreram. Três já são três a mais. Mas são três, não seis mil pessoas”, começou por dizer, para, logo de seguida, acrescentar que “podem ter morrido seis mil pessoas noutras obras, mas a FIFA não é a polícia do mundo, nem é responsável por tudo o que acontece pelo mundo.”

Infantino recorreu ao velho truque do “entãosismo” (whataboutism), o que causou indignação de algumas associações humanitárias. Mas, salvo as críticas, não houve consequências. (Em janeiro deste ano, já havia afirmado que a organização de mais campeonatos de futebol em África poderia evitar que mais migrantes morressem no mediterrâneo.)

Numa carta divulgada a vários órgãos de comunicação, a organização não-governamental (ONG) Human Rights Watch (HRW) acusou o presidente da FIFA de desvalorizar as mortes ocorridas em acidentes de trabalhos no Qatar. "Minimizou de forma surpreendente as mortes e as dificuldades dos trabalhadores migrantes no Qatar, onde, literalmente, construíram o Mundial de 2022”, apontou Minky Worden, diretora de iniciativas globais da HRW.

Note-se: os números do “The Guardian” não são os primeiros a fazer levantar alarme sobre a realização do evento desportivo no Qatar. Ou sequer os piores. De acordo com dados da Amnistia Internacional (AI), desde 2015 morreram 35 pessoas em projetos do Mundial. O número real, contudo, será muito maior dado que, entre 2010 e 2019, mais de 15.000 trabalhadores estrangeiros morreram no país, tendo a maioria dos óbitos sido atribuída a problemas cardiovasculares.

Apesar de vários apelos de boicote à competição no Qatar nos últimos anos, devido a violações dos direitos humanos no país, a 21 de novembro o Mundial irá mesmo arrancar. E, como não podia deixar de ser, Infantino tem lugar reservado.

Há quase duas décadas que o sósia (em calvície) de Pierluigi Collina - e que se assemelha bastante com o vilão “The Hood” da série infantil Thunderbirs, como já referiu o DailyMail - frequenta os camarotes VIP do desporto rei. E nem sempre nas melhores companhias.

O advogado dos relvados

Licenciado em Direito pela Universidade de Friburgo, casado e pai de quatro filhas, Giovanni Vincenzo Infantino entrou no mundo futebol pela porta do balneário e não pelos relvados. Ao que consta, nunca foi um virtuoso dos pés – “não tinha talento para jogar”, palavras do próprio -, nunca tentou seguir esse rumo. Quando assumiu o lugar cimeiro da FIFA, houve por isso quem criticasse a sua falta de experiência em campo.

Até chegar à presidência da FIFA, herdando o lugar de Joseph Blatter (e com o apoio do mesmo), trabalhou quase sempre com os aspetos mais técnicos – e legais – do futebol. Por outras palavras: fez carreira enquanto tecnocrata do desporto, num universo em que muitos desportistas saem do relvado com o desejo de se tornarem tecnocratas.

Para pagar os estudos superiores, trabalhou para a companhia de comboios suíça – limpando carruagens, entre outras tarefas -, e ajudando a mãe “no quiosque em que vendia jornais e chocolates”. A sua carreira profissional arrancou com a criação de um clube de futebol só para italianos no campeonato suíço, o Folgore. Depois, foi consultor da liga italiana, espanhola e suíça. Fez também trabalho académico na Universidade de Neuchâtel. Mas isso foi até ser apadrinhado por Michel Platini e começar a colaborar com a UEFA.

Durante nove anos, Gianni Infantino foi o número dois de Platini na UEFA. Em 2004, entrou na instituição para o cargo de diretor de Assuntos Legais e Licenciamento de Clubes. Já em 2007, subiu a secretário-geral e diretor de Governança e Assuntos Legais. Dentro da organização, o suíço desempenhou um papel importante na expansão para 24 do número de equipas do Euro 2016 e na conceção da Liga das Nações. A sua principal missão, todavia, foi implementar a política de fair play financeiro.

A ambição de Infantino de chegar à liderança da FIFA até podia existir então. Mas as circunstâncias foram determinantes. Em 2015, Platini estava lançado para ser presidente da FIFA, até que o Tribunal Arbitral do Desporto (TAS) entrou em cena; o francês foi afastado (durante quatro anos) de todas as atividades ligadas ao futebol, por ter recebido 1,8 milhões de euros em 2011, por um alegado trabalho de consultoria.

Infantino tomou então o lugar deixado vago por Platini e foi eleito presidente da FIFA. De acordo com um artigo do “The Guardian” de 2016, o suíço desdobrou-se numa hercúlea operação de charme para conseguir o lugar: terá voado o equivalente a cinco voltas ao mundo, para visitar representantes da FIFA.

Em 2016, já enquanto líder da FIFA, reagiu à decisão final do TAS relativa a Platini dizendo: “Acompanhei o Michel durante nove anos na UEFA, sete dos quais como secretário-geral. Enquanto presidente da UEFA, fizemos algumas coisas importantes em conjunto, e neste momento, quero focar-me nessas memórias positivas.”

Mais tarde, em junho 2019, quando o antigo patrão foi detido pelas autoridades francesas, por suspeita de corrupção na atribuição do mundial de futebol de 2022 ao Qatar, Infantino já não se pronunciou. A relação entre os dois terá azedado. Afinal, ainda este ano, Platini apresentou uma queixa contra o seu velho pupilo por tráfico de influência. O motivo: complô para afastá-lo da presidência da FIFA em 2015.

Os limites da diplomacia futebolística

É possível defender que a posição de um Presidente da FIFA é, acima de tudo, diplomática. E que, por isso, quem a desempenha é obrigado a dialogar com todo o tipo de pessoas.

Quando visitou o Papa Francisco no Vaticano, pouco tempo depois de ser eleito, Infantino sabia que o líder da Igreja Católica é um argentino ferrenho e fã do desporto rei. O presidente da FIFA ofereceu-lhe um camisola com o número 9. Em troca, o Papa pediu-lhe para “trazer ordem e honestidade” à FIFA.

Em 2017, quando os EUA, sob a liderança de Donald Trump, baniram a entrada de cidadãos de uma série de países muçulmanos, não hesitou em criticar a decisão - e ficou bem na fotografia. “No que toca às competições da FIFA, qualquer equipa, incluindo adeptos e representantes dessa equipa, que se qualifiquem para o Campeonato Mundial [de 2026, que se irá realizar nos EUA, Canadá e México] tem de ter acesso ao país, caso contrário não há competição. Isso é óbvio”, disse.

Em 2019, após a cidadã iraniana Sahar Khodayar se autoimolar depois de ser barrada de entrar num estádio no Irão, foi uma figura pivot para mudar a política discriminatória no país. “A nossa posição é clara e firme. As mulheres têm de ser autorizadas de entrar nos estádios de futebol no Irão. Agora é o momento para mudar as coisas”, defendeu.

A vida de um presidente da FIFA, porém, não se resume a reuniões consensuais. Há ligações e encostos de ombro tóxicos no currículo de Infantino.

Por exemplo: em 2018, a Rússia organizou o Campeonato Mundial de Futebol – já sob fortes críticas e sanções internacionais devido à anexação da Crimeia – e Infantino foi muitas vezes criticado por aparecer como uma figura próxima de Vladimir Putin. (Um ano depois do evento, recebeu das mãos do presidente russo a Ordem da Amizade da Federação Russa.)

Em fevereiro deste ano, dias depois de a Rússia ter invadido a Ucrânia, Infantino escapuliu-se a condenar as ações de Putin. Isto, apesar todas as equipas russas terem sido banidas das competições internacionais e a seleção afastada do Mundial no Qatar.

Em março, o presidente da FIFA passou também pela Arábia Saudita e encontrou-se com o príncipe Mohammed bin Salman –, o alegado mandatário do assassinato do jornalista Jamal Khashoggi em 2018; responsável pela guerra que decorre no Iémen – para “discutir áreas de cooperação e oportunidades para o desenvolvimento do futebol saudita”.

Depois há o Qatar. Além das suspeitas da nação ter “comprado” a organização do Mundial, o emir e líder do país, Tamim bin Hamad Al Thani, tem no currículo acusações como “apoio a grupos terroristas”. (Em setembro do ano passado, instou os líderes mundiais a não boicotarem os talibãs no Afeganistão.)

A nação que vai receber o Mundial em novembro não permitiu a nenhuma organização internacional de direitos humanos que supervisionasse a construção dos estádios para a competição. E a FIFA também não a obrigou a tal.

O Qatar é um dos países do mundo em que as mulheres têm menos direitos (o que é uma preocupação para muitas adeptas que gostariam de assistir e viajar até ao país), e onde orientações sexuais não-normativas não são toleradas. A homossexualidade masculina pode, inclusive, ser punida com a pena de morte.

A crítica mais dura de Infantino sobre o país? ”Não é perfeito.”

E os Panama papers?

Em 2023, Infantino aspira a ser eleito para um terceiro mandato como Presidente da FIFA. Já tem até apoios públicos nesse sentido, como o da Confederação Asiática. Mas se isso será de interesse para o futebol internacional é outra questão. Em 2015, quando Blatter abandonou o posto – ao fim de 18 anos - saiu envolto num véu de corrupção. O destino de Infantino será diferente?

Em abril de 2016, foi um dos nomes referidos nos Panama Papers. O motivo: dez anos antes, enquanto representante da UEFA, vendeu os direitos televisivos da Liga dos Campeões a Hugo e Mariano Jinkis, proprietários da empresa Cross Trading. E os empresários venderam imediatamente de seguida os mesmos direitos pelo triplo do preço.

Dentro da FIFA, a associação aos irmãos Jinkis fez soar alarmes. Desde 2015, os donos da Cross Trading enfrentam um processo de extradição da Argentina para os EUA; os procuradores norte-americanos alegam que os argentinos gastaram milhares de dólares em subornos, ao longo de vários anos, de modo a ganhar contratos de direitos televisivos.

Legalmente, Infantino não cometeu nenhum crime. No âmbito da investigação “Panama Papers”, também nunca houve provas que tivesse recebido algum suborno dos irmãos Jinkis. Quando surgiram as primeiras notícias, veio até a público afirmar estar “incrédulo” que a sua integridade estivesse a ser posta “em causa”.

Muito diferente foi a atitude do suíço quando, em julho de 2016, a FIFA anunciou uma investigação por suspeitas de que tivesse violado o código de ética da federação. Então, foi divulgado um documento em que apareciam discriminadas uma série de despesas pessoais que Infantino havia remetido para a conta da FIFA.

Menos de seis meses depois de ter sido eleito, havia gasto mais de 10 mil euros em colchões (para a própria casa), perto de oito mil euros numa máquina de Step, 1.600 euros num fato, 800 euros em flores e até 170 euros em lavandaria. Mais: havia contratado um motorista particular – à conta da FIFA – para servir a própria família.

O presidente da FIFA, juntamente com elementos do seu staff, teria também voado para a Rússia e o Qatar em jatos privados alugados pelas respetivas nações, o que podia constituir um conflito de interesses.

No final, contudo, as despesas de Infantino nunca chegaram a ser investigadas. E os voos para a Rússia e Qatar passaram à história. A investigação foi arquivada porque a conduta do presidente da FIFA não constituía uma “questão ética”, mas apenas de “procedimentos internos”.

Adiante. Em julho de 2020, Infantino foi acusado de ter tido uma série de reuniões secretas com o procurador-geral helvético Michael Lauber, enquanto este se encontrava a investigar um processo de corrupção na FIFA. Lauber demitiu-se e Infantino afirmou: “Encontrar-me com o procurador-geral da Suíça é perfeitamente legítimo e legal. Não houve violação de nada.” Mais uma vez, o Comité de Ética da FIFA entendeu que Infantino “não violou” quaisquer normas nas reuniões que manteve com o procurador-geral suíço.

Nas palavras de Gianni Infantino, “futebol é paixão, futebol é emoção, futebol é tolerância, futebol é respeito, futebol… é magia!” O futebol é mesmo muita coisa.