"Corajoso, honesto e rigoroso". Dois ambientalistas comentam documento de Francisco sobre clima
05-10-2023 - 20:54
 • José Pedro Frazão

Francisco Ferreira, presidente da Zero, e Viriato Soromenho-Marques, professor universitário, elogiam a nova Exortação Apostólica que o Papa dedica ao clima e ao ambiente, actualizando a Encíclica "Laudato Si" publicada há 8 anos.

Nas doze páginas que decidiu escrever oito anos depois da "Laudato Si", o Papa retoma algumas ideias da Encíclica para constatar não apenas que pouco foi feito como para reforçar a urgência da ação. É desta forma que os ambientalistas Francisco Ferreira e Viriato Soromenho-Marques analisam as palavras de Francisco em "Laudate Deum".

"Estamos na véspera de mais uma conferência das partes da Convenção do Clima, a COP 28 que vai ter lugar no Dubai, para a qual as expectativas são muito, muito baixas. E o Papa achou por bem chamar a atenção para isso e para a necessidade de inverter este rumo de descida ou abismo em que nos encontramos há muito tempo, apesar das convenções, das COP e das declarações de boas intenções", começa por sublinhar o filósofo Viriato Soromenho-Marques para quem a Exortação de Francisco combina "o sentido e a utilidade" da urgência.

Para Francisco Ferreira, a posição do Papa é expressa na altura certa, tendo em conta a realização da Conferência das Nações Unidas sobre o Clima, dentro de dois meses, no Dubai e a realização há poucas semanas de uma cimeira sobre o clima na ONU em Nova Iorque.

O atual presidente da Zero sublinha o rigor da análise do Papa, que elogia pela objetividade com que antecipa a COP28, ao alertar para a necessidade para negociações que se traduzam em eficiência, em vínculos e na capacidade de monitorização.

"Há uma identificação muito clara daquilo que têm sido as fragilidades desta negociação à escala mundial na área do clima. O Papa dá-lhe uma visão mais abrangente, porque efetivamente, se não mudarmos o paradigma de desenvolvimento que temos, serão os mais fracos a sofrer as consequências que estão aí e que são cada vez maiores", observa o ambientalista, também professor da Universidade Nova.

Um novo multilateralismo

Viriato Soromenho-Marques alerta que a reflexão do Papa é "profundamente baseada na realidade" e em 8 anos de recuos a nível do sistema Internacional, que, na sua opinião, se revela "impotente e incapaz" de resolver a "crise ambiental e climática". O filósofo lembra que um dos parágrafos inclui uma crítica profunda ao próprio Acordo de Paris, mostrando a sua profunda fragilidade.

" Há aqui uma palavra muito forte para o Papa Francisco: multilateralismo. Enquanto que, nas revistas académicas dos países europeus e dos Estados Unidos, ainda se discute se entrámos numa fase de multilateralismo ou se, ainda temos uma hegemonia e um unipolarismo, para o Papa Francisco - e para a maioria das pessoas razoáveis e capazes de ver para lá dos seus preconceitos – este é um mundo fragmentado, caótico, que precisa de ser reorganizado de forma multilateral. As velhas hegemonias têm de reconhecer que efetivamente a sua hora passou e têm que se sentar à mesa com outros que chegaram e que efetivamente têm coisas para oferecer", comenta Soromenho-Marques que acentua que neste particular o Papa adota um discurso "bastante rigoroso, até corajoso" elogiando a "honestidade intelectual" de Francisco.

Para Francisco Ferreira, o Papa põe verdadeiramente "o dedo na ferida" ao sublinhar que a humanidade está em perigo por causa do excesso de uso de recursos, das ambições de poder e de um multilateralismo que não tem estado a funcionar e que precisa de ser renovado.

Uma espécie de esperanto

Em traços globais, Soromenho-Marques deteta nesta Exortação uma " visão universal, cosmopolita, não apenas ecuménica, capaz de colocar as periferias do mundo no horizonte". O filósofo valoriza a forma de escrita do Papa, rica mas destinada a todos os leitores.

"O Papa escreve uma espécie de esperanto, que é ecuménico, do ponto de vista das grandes religiões do mundo, mas também é laico, visto que atinge a humanidade inteira. E junta, ciências da natureza, ciências sociais e humanas, a teologia, a filosofia, tudo isto numa linguagem. Qualquer pessoa com formação cultural básica média é capaz , não direi de de entender, mas de ser tocado por essa visão".

Há igualmente um traço de "honestidade intelectual" nesta Exortação, na leitura de Viriato Soromenho-Marques, com um texto que "mobiliza pela sinceridade", de uma forma "lúcida e esclarecida" para que ninguém termine a leitura com a impressão de que os problemas estão resolvidos.

Do clima à inteligência artificial

Viriato Soromenho-Marques salienta que ainda as referências do Papa Francisco à questão da tecnologia que chegam ao debate da inteligência artificial.

" No final do parágrafo 73 o Papa diz o seguinte: “um ser humano que pretende tomar o lugar de Deus, torna-se o pior perigo para si mesmo”. Isto está presente numa referência que ele faz no parágrafo 21 à inteligência artificial, que considera o corolário deste paradigma tecnológico de um ser humano considerado sem limites. É sem dúvida dessa forma que hoje em dia o paradigma tecnológico atinge uma figura verdadeiramente hiperbólica na inteligência artificial, aliás, com perigos imensos que a ela estão associados – e a todas as outras formas de tecnologia relativamente às quais nós perdemos completamente o controlo", salienta o professor de Filosofia da Universidade de Lisboa.

O antigo presidente da Quercus sublinha que há uma "situação verdadeiramente insustentável" a que o Papa Francisco também se refere, relacionada com o poder de decisão acerca das tecnologias.

"As limitações e os códigos de conduta escapam completamente às esferas política, cívica e deliberativa. Temos cem pessoas no mundo que decidem pelos 8.000 milhões restantes o que é que se deve fazer na inteligência artificial, nas nanotecnologias, biotecnologias, os limites, etc.".