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São 7h00 quando Sofia abre os portões da escola EB1 de Camarate, em Loures. Quem a olha e vê a força e boa disposição, não imagina que na noite anterior - a chefe de equipa de voluntários que ali está a receber mais de 300 peregrinos do Minho − mal dormiu. Muitos daquele grupo que foram à missa de acolhimento, que abriu oficialmente a Jornada Mundial da Juventude (JMJ), não conseguiram regressar sem ajuda.
Os transportes “colapsaram”. Ela não desesperou. A situação resolveu-se com a ajuda de dez paroquianos da igreja de Camarate, que com os seus carros se disponibilizaram a ir buscar os peregrinos exaustos e que não chegaram a tempo do último autocarro já depois da meia-noite, no Campo Grande, em Lisboa.
Às 3h00 estavam todos de regresso à escola e a poder descansar umas poucas, mas saborosas horas. Na manhã seguinte, a jovem de 29 anos, de origem cabo-verdiana, digere a situação com a ajuda do divino. Não duvida que “Deus providencia mesmo nas dificuldades”.
“Se
olharmos e procurarmos a ajuda Deus, ele providencia
”, acrescenta.
A história de vida de Sofia e educação cristã poderão ajudar a perceber o porquê de ela pontuar desta forma grande parte das conquistas ou dificuldades que ultrapassou.
Aos três anos, e depois de dois anos a batalhar por uma solução para o agudo problema de saúde que a atingiu, saiu de Cabo Verde para Portugal. Uma infeção grave na zona coxofemoral trouxe-a para o Hospital Pediátrico da Estefânia, em Lisboa. Em África. não poderia ter os cuidados de saúde de que necessitava.
De Cabo Verde a Lisboa até às barracas em Loures
A mãe teve de deixar os cinco irmãos à guarda de outros familiares. Só isso permitiria a Sofia ter uma vida com o mínimo de condições. Esteve nove meses internada até ter alta médica. Conseguiu-o ainda que com sequelas que a fazem ainda hoje coxear.
Em Cabo Verde, a família Mendes vivia da economia informal de uma horta. Em Portugal, o pai veio trabalhar para a construção civil. Estávamos em 1996 e o destino foram as barracas que começaram a ser construídas na cintura metropolitana de Lisboa. O Prior Velho, em Loures, acolheu muitos dos que chegaram dos PALOP nessa época.
Sofia tem boas recordações desses tempos. “Éramos livres e estávamos sempre na casa dos vizinhos. Não havia andares, tudo era muito próximo”, recorda. Era muito criança e a memória da privação, seja material ou dos mais básicos recursos, não perdurou.
Seguiu-se o realojamento, por volta de 1998, no bairro social da Quinta da Fonte, no mesmo concelho.
Lembra o choque de estar num apartamento, privada da ideia de comunidade que tinha construído nas casas toscas do Prior Velho. O realojamento não foi fácil. Eram muitas pessoas, de muitos locais e culturas diferentes. Chegaram dos países africanos de língua portuguesa, mas também ali foram parar famílias das comunidades ciganas.
Sofia recorda que foi rápido até começarem os conflitos, as “guerras”, os desentendimentos. O quotidiano foi sendo pontuado por violência e crime associado ao tráfico de droga.
Quinta da Fonte: é possível ver além do que é visível?
Em 2007, no Diário de Notícias o então vereador da Habitação, João Pedro Domingues, afirmava que aquele era na época o bairro mais problemático do concelho de Loures no que respeita a criminalidade. O jornal descrevia um local em que havia 786 fogos de habitação, onde foram realojadas 480 famílias em 1996, mais 350 do que as inicialmente previstas.
A maioria trazia como marca uma vida carenciada − cerca de 90% era beneficiária do rendimento mínimo −, desestruturada e até com "antecedentes criminais", segundo fonte policial.
A PSP referenciou logo a Quinta da Fonte como sendo uma zona associada ao roubo e ao tráfico de drogas.
Dos vários episódios que marcaram o bairro, um deles fez história. O “Público” descreveu-o como cenas “típicas de um filme do faroeste”. Estávamos em 2008 e os noticiários televisivos abriram com imagens do tiroteio nas ruas.
Ouviram-se disparos e viram-se homens a carregar armas de calibre militar num conflito que, segundo a PSP fez saber na altura, envolveu meia centena de pessoas.
O mesmo jornal diário descreve ainda que ficaram balas cravadas nas fachadas dos prédios. Houve carros vandalizados, nove feridos ligeiros e as polícias ocuparam as ruas durante dias a fio.
Enganar o destino
Apesar deste contexto, Sofia conseguiu sempre, segundo ela, estar numa bolha protegida desses problemas. Refere a mãe e Deus como elementos do mesmo colete à prova de bala que a fez chegar onde chegou.
E não foi pouco. Aos 29 anos é enfermeira no Hospital Psiquiátrico Júlio de Matos, em Lisboa, e está a caminho de concluir a segunda licenciatura em nutrição. Uma história de sucesso. Daquelas que furam o ciclo de pobreza e exclusão.
“Traçar um caminho diferente do que é a realidade do bairro, permitiu-me seguir caminhos de vida diferentes, a minha mãe teve um papel central na minha educação”, nomeia.
A fé, sublinha, foi fundamental para num contexto de violência “procurar sempre o lado bom da humanidade”. “Procurei sempre perceber que Deus tem um plano para mim. Se ele permitiu algumas adversidades, dali havia de vir algum ensinamento que me seria útil para não me desviar por maus caminhos”, concretiza.
Como o que o Papa diz chega ao terreno
O facto de o Papa Francisco fazer do olhar para as periferias uma prioridade do pontificado é visto pela jovem como fundamental. Entende que a vontade do Sumo Pontífice é a de “retirar o estigma” e “retirar as discriminações”.
“Podemos olhar para um bairro e dizer que há guerra, que há violência, luta de gangues, pessoas que consomem estupefacientes, mas há outras pessoas. Se não olharmos para elas que estão em busca de uma luz…. Acho que o Papa Francisco quer que tiremos os estigmas, as discriminações, e olhemos para a periferia”, acredita.
E termina com uma forte crença: “Deus ama-nos incondicionalmente”.
A forma como a sociedade olha para as periferias, segundo esta jovem, está frequentemente contaminada por um viés que limita a capacidade de ver além dos preconceitos: “Se formos para a periferia com esta perspetiva de bairros sociais, não vamos ver o bom que há. Mas se procurarmos, podemos encontrar pessoas, como eu, que saem daquela realidade e têm um percurso bom”, concretiza.
Sofia não acredita que Francisco esteja sozinho, neste discurso, dentro da Igreja. Enaltece o papel das paróquias do ponto de vista da educação e da ajuda alimentar, apontando os vários projetos que têm no terreno. “Faz a diferença na vida das pessoas, quando nos excluem a Igreja não nos exclui”, afiança.
A enfermeira continua a viver com a família na Quinta da Fonte e diz que não se sente “diminuída por viver ali”. “Não tem qualquer diferença morar ali ou noutra qualquer zona de Lisboa”.
Sofia está convencida que é a lente que usamos no nosso olhar que define o que vemos. E quando o tema são as franjas, as margens da sociedade, não é diferente.
“Se olharmos para o centro de Lisboa e alguns bairros que existem, vemos a mesma realidade”, compara.
E conclui, voltando uma vez mais ao Papa Francisco para suportar as ideias que tem sobre os excluídos: “Normalmente, olha-se sempre de uma forma negativa, vendo as realidades sombrias, mas dentro das periferias, dos bairros sociais, existem comunidades que vivem à margem de toda a violência”.