Mutilação genital feminina. A realidade que Inês Leitão sentiu “obrigação” de documentar
02-01-2017 - 18:02
 • Ângela Roque

O documentário “Este é o Meu Corpo” tem estreia marcada para 6 de Fevereiro, Dia Internacional de Luta contra a Mutilação Genital Feminina. A autora veio à Renascença falar de uma realidade que muitos ignoram e a que muitos fecham os olhos.

A escritora e argumentista Inês Leitão lança em Fevereiro o documentário “Este é o Meu Corpo”, uma denúncia e um alerta sobre a mutilação genital feminina. Autora de vários documentários, muitos deles a mostrar como a Igreja está e actua no terreno, Inês Leitão esteve na Renascença para falar deste trabalho.

Inês Leitão diz que sentiu “obrigação” de falar desta realidade que muitos ignoram e a que outros fecham os olhos. “Muitas vezes pecamos por omissão. Vemos as coisas acontecerem e não fazemos nada. As pessoas que têm possibilidade de se agarrar a causas e as mostrar, e fazer as pessoas reflectirem sobre elas, são privilegiadas e têm uma obrigação", diz.

Foi essa obrigação que sentiu como profissional, mas também “como mulher, nascida num país onde não há guerra, tendo tido acesso à educação e à saúde”. “Tenho obrigação de fazer alguma coisa pelas mulheres que vivem ao meu lado e são vítimas de violência, doméstica ou outra. Tenho obrigação de lhes dar voz e lutar por elas”.

E ainda mais sendo católica: “Veres a tua vizinha que é espancada todos os dias, ouvires os gritos dela e não seres capaz de ligar para o 112 para fazer uma denúncia porque é crime, e crime público… O Papa também nos pede para sermos interventivos."

E conclui: “Não podes dizer-te católica e cristã e depois ficares impávida e serena quando a violência acontece ao teu lado."

Por isso, gostou de ler a mensagem do Papa Francisco para o Dia Mundial da Paz, em que apela à não-violência e ao fim dos abusos contra mulheres e crianças. “É um Papa que está atento àquilo que tem sido a grande violência mundial, para mim a mais grave, porque sou mulher. Deixa-me muito feliz este Papa falar de violência sobre mulheres, numa altura em que temos um Donald Trump na administração da maior potência mundial, e que diminui as mulheres”, constata.

“Deixa-me muito feliz ter um Papa que, por seu lado, se mostra aqui interessado e preocupado com aquilo que é a violência de género, que é uma coisa atroz. E são tantas as mulheres que sofrem pelo mundo: mutilação genital, achatamento dos seios... A mulher está quase sempre a ser esmagada. É muito bom termos um Papa que olha por nós”, sublinha Inês Leitão.

A mutilação genital feminina também existe em Portugal

Inês Leitão decidiu avançar com este trabalho quando percebeu que a mutilação era uma realidade na Europa. Em Portugal também. “Entrevistei mulheres que dizem ter quase a certeza que se continua a fazer cá.”

Tudo se passa “em secretismo”, ninguém fala abertamente. Conta que “agora a suposta ‘moda’ será levar as crianças para os seus países de origem, mutilá-las lá e trazê-las de volta. Portanto, irão nas férias e voltarão”.

O que mais a impressionou foi descobrir que estas podem ser mulheres que “vivem e trabalham connosco, podem ir ao nosso lado no metro”. “Não temos noção de que elas guardam em si mesmas um segredo terrível, porque não falam.”

Para este documentário, Inês Leitão ouviu muita gente. Técnicos, investigadores, até para explicar o caminho que já se fez por cá ao nível da legislação. “Isto é crime em Portugal”, sublinha, lembrando que “já vamos no terceiro plano de acção contra a mutilação genital”.

Mesmo assim ainda há muito desconhecimento: “as pessoas ainda não estão suficientemente esclarecidas sobre o tema”. Nem sobre tudo o que implica. "São mulheres que sofrem sequelas, dor crónica, fissuras, partos gravíssimos, problemas urinários. Para além do grande trauma psicológico que deixa uma mutilação”.

Inês Leitão agradece a colaboração da comunidade guineense em Portugal, e dos muitos que estão a tentar contrariar esta prática, mas diz que não foi fácil encontrar gente disposta a dar a cara e contar a sua história. Até conseguiu ouvir muitos testemunhos, mas nem todas as mulheres quiseram gravar. Duas mulheres que foram mutiladas aceitaram falar para a câmara com a condição da sua imagem ser resguardada.

Já o testemunho de uma sobrevivente que escapou à excisão aparece no documentário sem filtro. "É a Anabela, que é hoje uma activista”, conta. “Era católica, mas já adulta apaixonou-se por um muçulmano e converteu-se ao islamismo. A primeira mulher dele queria que ela fosse mutilada, como ela tinha sido, mas ela não aceitou e pediu ajuda.” E escapou.

Hoje, Anabela dá o seu testemunho a outras, “para que mais e mais mulheres saibam que não há nada no Corão que diga que uma mulher tem de ser mutilada”. Inês Leitão não tem dúvidas de que “isto tem de ser desmitificado”.

A começar pelos homens: “têm de ser os imãs das mesquitas a explicar nas suas comunidades que isto não é uma prática que venha no Corão”.

A excisão genital feminina existe em mais de 50 países do mundo e não atinge só as muçulmanas, há animistas que também praticam. Há até vítimas cristãs: “Há um caso que é falado do documentário de meninas que eram católicas e que foram a brincar com as suas amigas e acabaram, como elas, excisadas”.

Inês Leitão não gosta que se diga que esta é uma questão cultural. “Não há cultura nenhuma que se possa sobrepor àquilo que é o direito inalienável da mulher e da menina ao seu corpo.”

“Este é o Meu Corpo” junta, mais uma vez, as “manas Leitão”, como são conhecidas no meio. Daniela é a realizadora, e Inês a argumentista. Entre os trabalhos que já fizeram juntas para dar conhecer o que a Igreja Católica faz no terreno, está o documentário “Mulheres de Deus”, sobre o trabalho das irmãs hospitaleiras com doentes mentais, “O Meu Bairro”, que conseguiram entregar em mãos ao Papa, que mostra o que os missionários da Consolata fazem numa zona problemática nos arredores de Lisboa, e “O Padre das Prisões”, sobre a Pastoral Penitenciária.

O novo documentário tem estreia marcada na RTP África a 6 de Fevereiro, Dia Internacional de Luta contra a Mutilação Genital Feminina.

Inês espera que seja “o pontapé para começar a pensar que estas mulheres vivem ao nosso lado, frequentam o Serviço Nacional de Saúde, precisam de ser apoiadas, que já há técnicos e uma série de pessoas preparadas para as receber, mas que isto ainda é um tema tabu, muito vivido em secretismo”.

E conclui: “Se ter visto este trabalho for determinante para uma mulher pensar melhor se deve levar a filha à Guiné para fazer isto; por uma mulher que não tenha sido vítima, este documentário já terá valido a pena. Por uma única mulher que seja”.

A entrevista a Inês Leitão foi transmitida no espaço informativo das 12h00, em que, à segunda-feira, a Renascença dá destaque aos temas sociais e da vida da Igreja.