Há crianças vítimas de maus-tratos que ficam meses no hospital depois da alta
18-11-2015 - 07:34
 • João Carlos Malta

No Hospital Amadora-Sintra, entre 5% e 10% das crianças vítimas de abusos físicos e sexuais ficam internadas, dias ou mesmo meses, depois de terem alta clínica, aguardando que lhes decidam o futuro. No caso mais grave, um menino viveu cinco anos nestas instalações médicas. “É o pior dos sítios para uma criança ficar, mas, por vezes, é a única solução”, defende uma responsável hospitalar.

Há crianças vítimas de abusos físicos e sexuais que, depois de serem tratadas nas unidades de saúde e de terem alta clínica, acabam por ficar internadas no hospital, durante dias ou meses, à espera que a Justiça lhes encontre um destino para começarem uma nova vida.

No Hospital Amadora-Sintra, entre 2012 e 2014, foi o que aconteceu a cerca de 10% das 108 crianças que deram entrada nas urgências hospitalares por “motivos sociais”. Umas ficaram alguns dias, outras semanas ou mesmo meses.

Num dos casos mais dramáticos, um menino portador de VIH e com paralisia cerebral, após ter sido internado com sinais de ter sido agredido, viveu cinco anos no Amadora-Sintra. A criança, de ascendência africana, só conseguiu ter um lar quando um casal sueco o encontrou.

Helena Isabel Almeida, pediatra e coordenadora do grupo de protecção de crianças em risco do Hospital Amadora-Sintra, alerta que esta unidade hospitalar, apesar de acolher os meninos depois de lhes dar alta, não está “preparada” para o fazer.

“É o pior dos sítios para uma criança ficar. Uma grande parte das crianças internadas está infectada e as que ali ficam podem apanhar doenças”, frisa a médica.

A pediatra chama a atenção para a morosidade da resolução dos casos em que a criança não pode ser reintroduzida em contexto familiar. É prejudicial para o desenvolvimento psicológico da criança permanecer num hospital, um local em que “se trabalha por turnos com equipas muito grandes e em que a relação é bastante impessoal”.

“Uma criança maltratada é alguém que precisa de ter profissionais especializados e a encorajá-la no seu novo projecto de vida”, reforça a médica.

Sem alternativa

O director-adjunto do Centro de Estudos Judiciários, o juiz-desembargador Paulo Guerra, reconhece que estes casos ocorrem. “As crianças não devem ficar nos hospitais. Essa é a luta entre a Saúde e a Justiça. Os profissionais de saúde querem que a criança saia, porque é um sítio em que facilmente é contaminada. Temos que dar uma resposta social”, sublinha.

No entanto, o director-adjunto do Centro de Estudos Judiciários, com carreira em casos que envolvem a criança e a família, reconhece que há processos em que não tem existido outra alternativa.

Helena Isabel Almeida chama a atenção que nas situações em que a criança fica no hospital depois de ter alta a maior parte dos agressores fazem parte do núcleo familiar. Pai e mãe são percentualmente as figuras mais visadas nestes abusos, o que torna a possibilidade de regresso à família “residual”.

Das 108 crianças que nos últimos dois anos chegaram às urgências de pediatria do Hospital Amadora-Sintra, 85 são recém-nascidos e 23 têm entre três e cinco anos.

“Muitas vezes, a família depende economicamente do agressor. São situações complicadas. E estas crianças não podem voltar para casa. Têm de ficar institucionalizadas: ou num hospital ou num dos lares de emergência que apareceram nos últimos anos e que funcionam bem”, explica Helena Isabel.

A mesma especialista alerta ainda para os casos dramáticos de crianças agredidas que sofrem de doenças crónicas. Para elas não há lares, nem centros de acolhimentos. “Há crianças com a cor, com a idade e com doença errada. Sabemos que há meninos que vão ser rapidamente adoptados e outras que nunca o vão ser”, lembra.

P. esteve cinco anos a viver no Amadora-Sintra

O caso mais emblemático e marcante no serviço liderado por Helena Isabel Almeida foi o de um menino com ascendência num país africano de língua oficial portuguesa.

P. deu entrada no hospital vítima de agressão, mas com um quadro clínico associado complicado. Era portador de VIH e tinha paralisia cerebral. A mãe não ajudou a que o caso se resolvesse. Não queria que P. fosse adoptado.

O menino acabou por viver cinco anos no Hospital Amadora-Sintra. Em Portugal não se encontrou uma solução para o caso. Só depois de P. ter sido colocado nas redes de adopção internacionais através de instituições creditadas é que o caso se resolveu, em 2014.

P. encontrou uma família na Suécia. “Está muito feliz. Recebemos e-mails e estão todos muito contentes. Foi um final feliz, mas não foi possível que ocorresse em Portugal. Teve de ser fora do país”, diz Helena Isabel.

Reconhece que estes casos têm uma solução complicada. A família de acolhimento tem de ter condições económicas que permitam fazer face aos desafios que crianças com necessidades especiais exigem.

Faltam famílias de acolhimento

O juiz-desembargador Paulo Guerra afirma que, em muitas situações, os serviços de saúde dão a alta clínica, mas é preciso “uma alta social”. Há que conseguir uma casa para a criança ser alojada. As famílias de acolhimento temporário seriam uma solução, mas não existem em número satisfatório em Portugal.

“Há casos em que o regresso a família é impossível, e precisamos de dar um destino. Houvesse mais famílias de acolhimento, que não existem. Essa é uma situação que é residual”, reconhece. Não existe em Portugal uma cultura de acolhimento temporário de crianças, para que a institucionalização possa ser um último recurso.

O magistrado avança que a 8 de Outubro entrou em vigor um novo enquadramento legal que pode minorar o fenómeno das crianças vítimas de maus-tratos que ficam nos hospitais depois de terem alta médica. “A solução imediata” para estas crianças que não podem ser reintegradas na família é “a institucionalização num centro de acolhimento [temporário]”.

“É uma solução de emergência em que as crianças não devem passar mais de 48 horas. Trata-se de uma entrada para preparar uma passagem para uma casa de acolhimento futura, mas isso está por regulamentar”, explica Paulo Guerra.

O juiz diz que, apesar de a lei já ter entrado em vigor, o mesmo não ocorreu com a regulamentação. “Com a instabilidade política que o país vive, não sabemos quando é que isso irá acontecer”, teme o jurista.