​Pentecostes contra os tribalistas de Babel
29-06-2018 - 06:54

Contra os tribalistas da esquerda e contra os nacionalistas de direita, o cristão tem de reafirmar a existência de um chão comum; todas as línguas do mundo podem convergir na verdade.

Ao longo das últimas décadas, a esquerda tribalista (conhecida pelos eufemismos “multiculturalista” ou “politicamente correcto”) fomentou a pureza étnica e cultural das minorias; cada minoria foi defendida como um micro nacionalismo dentro de cada estado. Agora, como seria de esperar, esta linguagem identitária galgou o muro e inundou o discurso da maioria. Tal como as “políticas de identidade” da esquerda, esta linguagem nacionalista à direita é inaceitável, sobretudo se estivermos a falar de líderes ou eleitores que se dizem católicos ou cristãos.

Um cristão nacionalista é uma contradição nos termos. Um cristão que vota Trump ou Orban está a trair o próprio evangelho, é um cristão que não acredita que Pentecostes conserta Babel.

Desde o início, a Bíblia é clara em relação aos perigos da idolatria nacionalista. Os leviatã nacionais são ídolos ou bezerros de ouro que colocam em causa a lealdade à lei universal de Deus, pois remetem os homens para morais tribalistas; fecham os homens num inferno relativista onde cada grupo tem o seu deus e a sua noção de bem. O evangelho torna o universalismo bíblico ainda mais claro, sobretudo quando a abertura de Paulo vence o tribalismo ainda judaico de Pedro. Errado como sempre, Pedro estava encostado à torre de Babel, pensando que a verdade do Senhor era só para os circuncisos. É Paulo quem vem dizer que a verdade também era para os incircuncisos, a verdade era para judeus e pagãos por igual; é Paulo quem coloca Pentecostes, qual pedreiro, a restaurar e a completar Babel, reunificando a humanidade com uma gramática moral única. Ora, muitas vezes, fico com a impressão de que muitos cristãos não querem compreendem Paulo, preferindo a violência e a divisão do Antigo Testamento. Este é um desses momentos. Preferem a divisão de uma espécie de tribalismo ou nacionalismo judaico ancorado na ideia de povo escolhido (e fechado); preferem a violência sem misericórdia.

Querem um exemplo? No Antigo Testamento, surge muitas vezes a ameaça de uma língua de fogo a ferir os olhos de quem ousa olhar para Deus (Salmo 39, por exemplo). Repare-se agora na diferença: no Pentecostes, as línguas de fogo são um sinal de concórdia: “Viram então aparecer umas línguas, à maneira de fogo, que se iam dividindo, e poisou uma sobre cada um deles. Todos ficaram cheios de Espírito Santo e começaram a falar outras línguas” (Act 2, 3).

Quando hoje vejo alegados cristãos a defender os Trump e os Orban, penso sempre nestes equívocos defensivos que desautorizam a própria essência do Novo Testamento. O tribalismo do politicamente correcto não se combate com um tribalismo cristão. Como bem percebeu Charles Péguy, um nacionalismo cristão como o de Franco ou Maurras é um oximoro.

Um cristão não pode divinizar um estado, um direito positivo, uma kultur, uma biologia, uma cor de pele, uma linhagem de sangue, uma língua. Um cristão não pode acreditar que estamos destinados à desordem tribalista de Babel. Portanto, contra os tribalistas da esquerda e contra os nacionalistas de direita, o cristão tem de reafirmar a existência de um chão comum; todas as línguas do mundo podem convergir na verdade, que é una e não plural. Contra os tribalismos dos dois lados do espectro, o cristão tem de dizer que existe uma irmandade humana (direito natural; direitos humanos) que não pode ser dividida pelo relativismo tribalista, que é um ser de língua bífida: o politicamente correcto à esquerda, nacionalismo à direita. Só a tradição do direito natural, de São Paulo e do São Paulo secularizado (Kant), pode retirar a Europa da sombra de Babel. O “confundir de tal modo a linguagem deles que não consigam compreender-se uns aos outros” (Gn 11, 7) não é castigo eterno, até porque sabemos que, ao ouvir o trovão das línguas de fogo, “a multidão reuniu-se e ficou estupefacta, pois cada um os ouvia falar na sua própria língua. Atónitos e maravilhados diziam: mas estes que estão a falar não são todos galileus?” (Act 2, 6).