A maior quarentena do mundo
13-08-2020 - 08:00
 • José Lopo de Carvalho*

Com mais de cinco mil mortos desde o início da pandemia, a Argentina está muito longe dos números do Brasil e outros países da região. Para um português a viver há anos no país a Covid é apenas uma agravante de um problema mais grave, que é a política.

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Poderia ser um filme de ficção científica. Poderia ser uma comédia negra. Poderia ser um documental trágico. No entanto é um filme de fantasia que demora horas e que em nenhum momento faz grande sentido. Tenho a certeza que quando tudo isto acabar, pelo menos aqui na Argentina, vamos ficar com aquela sensação estranha de quem acabou de ver um episódio de “Twin Peaks” e ainda não percebeu bem o que se passou…

Hoje cumprimos 146 dias de quarentena. Não é um erro ortográfico, leu bem. 146 dias de quarentena. Lembram-se dos memes que circularam logo quando isto começou, com a típica legenda "Quarentena – dia 138" e alguma imagem muito engraçada que andou a voar de whatsapp em whatsapp? O mais provável é que alguém aqui na Argentina tenha mesmo enviado algo muito parecido e que, infelizmente, é real.

Tudo começou no longínquo mês de março. Dia 19 marcava o início do isolamento social, preventivo e obrigatório. Desde logo fizeram de tudo para evitar o uso da palavra “quarentena”. Como nos filmes de Harry Potter com o nome de Voldemort... E de 15 em 15 dias lá estávamos todos nós colados à televisão à espera que o Presidente nos anunciasse que iríamos estar mais 15 à espera de novo anúncio em que, surpresa, iríamos ficar a saber que dentro de 15 dias se estendia o isolamento social, preventivo e obrigatório. Podíamos sair de casa para fazer o mínimo e o indispensável: compras, farmácia, alguma urgência médica ou familiar, troca de miúdos entre pais separados, etc... Incrivelmente, o povo argentino obedeceu. Fez tudo bem, foram um exemplo. As ruas estavam realmente desertas. As avenidas de Buenos Aires, que explodem de atividade a toda a hora, pareciam uma cena de duelo num “western”. Deixámos de ouvir o habitual ruído de trânsito para ouvir as típicas cotorras (uma espécie de papagaio mais pequeno) que abundam por aqui, alguma televisão ou rádio de um vizinho com problemas auditivos, irmãos à bulha com algum jogo da Playstation, entre outras pérolas. Todos fechados em casa como uma grande família universal que só saía para ir à varanda aplaudir os nossos médicos.

Mas como tudo o que é bom acaba, o argentino fartou-se e fez aquilo que ele sabe fazer melhor, que é demonstrar essa insatisfação. Desde marchas anti-quarentena, "cacerolazos" massivos contra o governo, cortes de ruas, greves de transportes, e muitas outras coisas com as quais já estamos acostumadíssimos a conviver. Um "cacerolazo", – que imagino que muitos não saibam o que é – consiste em ir para rua, para a janela, para a varanda, para o pátio, para o terraço ou qualquer outro lugar com boa acústica, de tacho na mão e rebentá-lo, uma e outra e outra vez com uma colher de pau ou outro objeto que permita tirar os melhores acordes do nosso tacho. É uma barulheira sem igual. Tem a sua origem em França, mas neste país, e acho que em toda região sul-americana, fizeram disto uma arte. E o engraçado é que costuma resultar. Quando um Governo pensa nalguma medida e o povo não está de acordo, se o "cacerolazo" for suficientemente ruidoso, o mais certo é o Governo voltar atrás ou fazer alguma alteração a um projeto. Tiro e queda.

Num país já de si complicado e com vários problemas estruturais só faltava mesmo uma pandemia. A lareira argentina já tinha lenha suficiente, não era necessário mandar um jerrican cheiinho de gasolina lá para dentro... Já vínhamos de um 2019 extremamente complicado que culminou com o regresso de um Governo peronista, a desvalorização do peso argentino a níveis históricos, a pobreza a aumentar... Para terem uma ideia da moeda argentina, o Peso (que coitadinho não tem peso absolutamente nenhum em nenhuma parte do mundo), ficam a saber que no dia 1 de janeiro de 2019 eram precisos 35 pesos para comprar um dólar. Um ano mais tarde esse mesmo dólar já custava 62 pesos, ao qual acrescia um imposto de 30% recém-criado pelo novo Governo peronista. Um imposto solidário, segundo o mesmo Governo, e que serviria para aumentar os planos sociais para os setores mais necessitados da população. Eu cheguei cá em 2010 e 1 dólar custava 5 pesos...

Como aqui se diz e muito bem, "con el diario del Lunes todo es más facil", a versão argentina do "Oh, assim também eu!". Isto para dizer que, como o vírus já estava instalado em quase toda a Europa e, por exemplo, em Itália já havia 100 mortos por dia quando tivemos o primeiro caso confirmado, o Governo já tinha alguns exemplos do que poderia ou não resultar no combate à Covid. O Governo e a própria população... Assim como em Portugal houve pessoas, escolas e até empresas a fazerem uma quarentena autoimposta, aqui foi bastante parecido. No meu caso particular, o banco onde trabalho iniciou o protocolo de teletrabalho obrigatório logo no início de março, 19 dias antes de o Governo anunciar a quarentena que continua a bater recordes de longevidade.

Como já mencionei, aqui o isolamento social foi realmente seguido à letra, pelo menos nos primeiros dois meses. Tirando algum desastre, como por exemplo o dia em que por uma falha de comunicação do Governo as ruas se encheram de reformados à porta dos bancos para ir cobrar o cheque mensal, a quarentena foi altamente respeitada.

Infelizmente aqui, para além de todas as pessoas que precisam de sair de casa para poder trabalhar, há um grande número de trabalhadores informais, que estão por fora do sistema e que se não saem, literalmente, à rua para ganhar o pão nosso de cada dia não podem alimentar a família.

Não tínhamos mais de 40/50 novos casos por dia e ainda nem tínhamos 1000 mortos, mas não saíamos da quarentena estrita... Rapidamente as notícias já davam um maior foco a todos os negócios, empresas e pessoas que fechavam portas e/ou declaravam falência por causa do vírus. Houve alguns anúncios de ajudas económicas para empresas, empréstimos a taxa 0%, coparticipação dos salários, entre outras, mas era preciso a empresa cumprir com alguns requisitos que a maioria das pequenas e médias empresas não consegue cumprir devido a temas impositivos ou burocráticos típicos de país subdesenvolvido e, no fundo, poucas foram as que puderam realmente aproveitar esses benefícios e conseguir manter-se em funções. Depois apareceram políticos a dar ideias de que o Governo deveria ficar com uma percentagem das empresas que aderissem a esses créditos, ainda quiseram expropriar uma importante “trader” de cereais com algumas dívidas e em concurso de credores, e tudo isto foi ultrapassado graças a mais um "cacerolazo"!

Anunciaram que alguns presos iam beneficiar do sistema de prisão domiciliária e que haveria uma redução de penas para aqueles cuja sentença terminasse até ao fim deste ano. Imediatamente aumentaram os níveis de delito e de violência. A Argentina não terá um índice de criminalidade que se compare a Brasil ou México, mas ainda assim é um índice demasiado alto e que tem vindo a aumentar exponencialmente. Novamente um "cacerolazo" impediu a expansão deste "projeto", mas o mal já estava feito e de forma absolutamente ridícula viram-se casos de delinquentes a ser detidos várias vezes na mesma semana porque com a desculpa do vírus e do risco de propagação dentro do sistema prisional pura e simplesmente não eram presos. Famílias e vidas destruídas por delinquentes que entram na esquadra pela porta da frente e alguém lhes abre a porta de trás...

Imaginem um número de malabarismo do Cirque du Soleil em que, no último momento, alguém atira alguma coisa diferente mas que, como é o Cirque du Soleil, tudo se resolve. Um malabarismo em cima de um monociclo com um pino lá pelo meio, e acrobacia e todos os extras típicos de um verdadeiro número de circo que até parece que vai correr mal, mas que obviamente foi apenas para criar um bocado de "suspense". Isso seria o equivalente à situação europeia (espero...)! Agora imaginem um semáforo na Praça de Espanha em que aparecem dois amigos com 3 bolas de ténis e que do nada aparece um terceiro com uma bola de bowling em chamas e escorpiões venenosos lá dentro e de repente o fogo já chegou à Gulbenkian, choque em cadeia desde o El Corte Inglés e o fumo do incêndio e de todo o caos provoca a queda de três aviões sanitários com ajuda humanitária. Isto seria o equivalente ao que se vai passar nestas latitudes.

Temos todos os ingredientes necessários para o desastre mas, ainda assim, acredito que a situação acabe por ser resolvida de forma positiva. Apesar de tudo, se há coisa que esta sociedade sabe fazer é reinventar-se e com a quantidade de crises que atravessaram conseguem sempre seguir em frente. Uns melhor, outros não tão bem, alguns ficarão pelo caminho, mas realmente esta malta está mais habituada à adversidade que a qualquer outra situação normal. Parece que não sabem viver de outra forma. E há anos e anos que têm um vírus gigante espalhado por todo o país, muito mais letal e perigoso que a Covid – o Peronismo ou qualquer outro nome que dão a políticas que tentam disfarçar de Peronismo. Basta ver o que era o país antes de Peron subir ao poder e aquilo que é hoje para perceber... E o pior exemplo de Peronismo disfarçado é o Kirchnerismo, que começou com o mandato de Nestor Kirchner em 2003, seguido de dois mandatos da sua esposa Cristina Fernández de Kirchner entre 2007 e 2015, e que entretanto é a actual vice-presidente do país, e já se começaram os preparativos para tentar levar o filho, Máximo Kirchner, ao poder em 2023. Os últimos governos de Cristina foram marcados por corrupção e alguns ministros e até um ex-vice-presidente acabaram processados e/ou presos. A própria ex-Presidente, Cristina Kirchner, tem várias denúncias nos tribunais e só não chegou a ser presa porque tem imunidade parlamentar.

E neste preciso momento, com todo o cenário que acabo de descrever e de que poderia continuar aqui a dar milhares e milhares de outros exemplos, numa altura em que toda uma sociedade pede ajuda, em que mais de 250 mil pequenas e médias empresas faliram, em que a criminalidade aumenta diariamente num país que já tinha um nível de criminalidade bastante alto e em que empresas multinacionais aproveitam o cenário desolador e levam as operações para outros países, qual é o tema que actualmente o Governo está a discutir? Uma nova reforma judicial liderada por – quem mais? – Cristina Fernández de Kirchner, feita á sua medida e para conseguir a impunidade que tanto busca, tanto para ela como para o seu Governo corrupto. Tanto é que já há um "cacerolazo" massivo agendado para 16 de agosto e que, esperemos, tenha o efeito desejado.

Nesse mesmo dia há novo anúncio do Presidente. Vamos lá a ver se se levanta o isolamento social, preventivo e obrigatório ou se continuamos a bater recordes! Nós cá estaremos, de "cacerolazo" em "cacerolazo", a tentar que este estado seja um pouco mais normal e que deixe de ser o país onde tudo está ao contrário.


*Jose Lopo de Carvalho tem 37 anos, é casado com uma argentina, sem filhos (ainda), e trabalha como Operations Control Manager no JP Morgan.