​“Ricardo, não vás. Não vás. Mas ele foi e já não volta”
19-06-2017 - 00:26
 • João Carlos Malta

Em Pobrais, um terço da aldeia perdeu a vida a tentar fugir do fogo que lhe engoliu casas, animais, vegetação. Mas pior que tudo foi uma tentativa desesperada que levou a vida de 11 vizinhos e amigos.

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“Ricardo, não vás. Não vás. Deixa aí o carro”. As palavras ainda ecoam na cabeça de Célia quando a memória pára no momento em que o vizinho, de pouco mais de 30 anos, pegou na viatura, meteu a mãe dentro e arrancou a toda a velocidade.

Poucos metros à frente, o fogo devorou o carro onde iam. E os outros dos vizinhos que tiveram a mesma ideia. Naquela estrada, entre Castanheira de Pêra e Figueiró, este domingo ainda se viam as carcaças dos carros carbonizados. Não sobrou nada. Apenas um negro que cobria tudo. Profundo.

Ricardo e a mãe são dois dos 11 habitantes de Pobrais, em Pedrógão Grande, que morreram na sequência do grande incêndio que nos últimos dois dias destruiu grande parte das povoações do concelho.

Cecília não tem dúvidas. Se os vizinhos não tivessem saído de casa apenas tinha havido uma morte na aldeia. A de um idoso acamado.

Mas Ricardo não quis ficar. “Ele só dizia: ‘Não posso ficar. Não posso’. E foi-se embora”, recorda a moradora de 45 anos.

“Se tivermos de morrer, morremos em casa”

O pânico apoderou-se de toda a gente à volta. As fagulhas circulavam no céu incandescentes a uma velocidade que os olhos muitas vezes não conseguiam seguir. “Parecia fogo-de-artifício”, lembra. Metia medo. Muito medo.

Cecília tinha o filho de 16 anos a dizer-lhe: “Ó mãe, está toda a gente a fugir. Vamos morrer aqui”.

Ela olhava para fora e tinha uma certeza. Sair era morrer. “Se tivermos de morrer, morremos em casa”, respondia ao adolescente. “Tinha a certeza que se saísse morria lá fora”, acrescenta.

Cecília faz uma pausa. Respira, enche o peito de ar. “Pensei que íamos todos morrer.”

“Fugi, mas tinha um anjo ao meu lado”

No largo em frente à casa desta mulher, estava outro vizinho, Armando Casinhas. Ele, como Ricardo, quis sair de casa e fugir. Porquê? “Medo, tive medufas. E nunca pensei que estivéssemos cercados”, atira.

Armando acha que um anjo se sentou ao lado dele no carro. “Tive muita, muita sorte.”

“Foi um momento tão rápido que só deu para pensar que íamos morrer todos assados. Só vinha à ideia fugir, mas todos os que fugiram ficaram. Eu fui um dos que fugi, mas tinha um anjo ao meu lado. Naquele inferno de carros a arder, tive a sorte de não me pegar fogo no carro. Consegui sair daquele cinema, daquele filme”, conta o homem de 67 anos.

Para Armando não há dúvidas: “estou a falar aqui consigo por um milagre”. E de seguida atira uma imagem que ilustra tudo o que viu. “Isto foi um tufão de fogo tocado a vento.”

“Pensei na morte, que ia ficar ali, que já não saía dali”. Armando lembra o momento em que virou para trás e saiu da estrada em que outros ficaram.

As conversas vão-se atropelando umas nas outras porque, a cada pessoa que por ali passa, volta a recordar-se quem morreu, os que não se vão voltar a ver. Pobrais é formado por um grupo de 30 pessoas das quais 11 desapareceram. E todos nasceram e viveram sempre ali. Conheciam-se de trás para a frente.

Perdas irreparáveis

Fernando Paiva, tal como Armando, também decidiu fugir. O filho veio buscá-lo e, felizmente, conseguiu sair para o lado contrário do local onde os vizinhos haveriam de perder a vida.

“Os carros estavam todos trancados. Não se passava. Batiam uns nos outros. Foi uma sorte virar para o outro lado”, explica.

Fernando perdeu uma das casas que tinha. Perdeu também os animais, cabras e galinhas, perdeu muitos investimentos. O homem de 67 anos ainda procura as palavras que melhor definam o que viu.

“Isto foi um fenómeno. Isto foi um tornado. Nem faço ideia da força que isto trazia. Nunca me lembro de uma coisa assim”, descreve. “Os prejuízos são incalculáveis”, acrescenta de seguida.

Mas mais do que as perdas materiais, é a perda dos amigos e de vizinhos que mais dói. Será difícil que o dia 17 de Junho saia da cabeça de qualquer um dos habitantes daquela povoação. Eles já sabem disso. E sabem que vão ter de lutar contra as memórias.

“O Ricardo tinha acabado agora a casa para ir viver com a mulher. Estava tão feliz, via-se na cara dele. E agora isto”, remata Armando.