No princípio de maio, em plena crise sanitária e económica o Tribunal Constitucional (TC) alemão lançou uma ameaça gravíssima à compra de títulos de dívida pelo Banco Central Europeu (BCE). O TC exigiu que o BCE demonstre, num prazo de três meses (que termina a 5 de agosto), que o programa de compra da dívida pública "não tem efeitos desproporcionais na política orçamental". O TC não acusava a compra de dívida pelo BCE de ser ilegal. O que afirmava é que essa compra tomou uma proporção e um peso que já sai fora das competências da autoridade monetária. Se a dúvida do TC fosse confirmada, o Bundesbank deixaria de poder comprar dívida pública estrangeira.
Embora inesperada e apresentada num momento particularmente difícil na Europa comunitária (não terá sido por acaso...), esta exigência do TC alemão insere-se numa linha de combate ao euro, em que também participa o partido AfD, eurocético, linha que se tem tentado afirmar desde há anos na RFA.
Trata-se de uma dupla ameaça. Por um lado, procura travar a compra de títulos de dívida pública pelo BCE, lançada por M. Draghi para salvar o euro e que muito tem ajudado Portugal. Por outro lado, e ainda mais grave, a iniciativa do TC alemão põe em causa um princípio básico da integração europeia: a legislação da UE prevalece sobre as leis nacionais dos Estados membros da Europa comunitária.
Um dos cavalos de batalha dos eurocéticos, nomeadamente da AfD, é impedir que decisões comunitárias se sobreponham a leis nacionais. E os governos da Hungria e da Polónia contestam o primado do Direito europeu – mas ninguém os obrigou a entrarem na UE, onde esse primado está claramente inscrito...
A UE reagiu com vigor à ameaça do TC alemão. Christine Lagarde, sucessora de M. Draghi na presidência do BCE, logo veio confirmar que o programa de compra de títulos iria continuar. O Tribunal de Justiça da UE, no Luxemburgo, lembrou, uma vez mais, a prevalência do direito comunitário. E a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, chegou a admitir abrir um procedimento por infração à Alemanha por causa da bizarra iniciativa do seu TC.
Felizmente, o problema parece estar ultrapassado. O Bundesbank, o banco central alemão, vai poder continuar a comprar dívida pública. Isto porque tanto o governo da RFA como o seu parlamento federal analisaram a compra de títulos pelo BCE e na semana passada declararam que nada encontraram que tenha “efeitos desproporcionais na política orçamental" germânica. É o que informa a edição de ontem do “Financial Times”, jornal que, apesar do Brexit, mantém uma cuidada informação sobre assuntos da UE.