Defensores da Constituição
22-09-2019 - 09:53

Marcelo Rebelo de Sousa tem resistido a enviar leis para o Tribunal Constitucional. E, por isso, já teve duas derrotas provocadas pelos partidos.

A popularidade de Marcelo Rebelo de Sousa é o que é (enorme e inquestionável) e os assuntos em causa (gestação de substituição e metadados) são, para o comum mortal, quase do domínio da metafisica.

Talvez por isso, ou por andarmos todos mais ocupados com a campanha eleitoral, pouco se tenha falado da segunda derrota constitucional do Presidente da República em pouco tempo.

O Presidente da República, no seu ato de posse, jura “defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição da República Portuguesa”. Para o ajudar nessa tarefa, pode recorrer ao Tribunal Constitucional (TC), coisa que Marcelo Rebelo de Sousa não tem feito. Talvez por ser sido deputado constituinte e professor de Direito Constitucional, Marcelo resiste em consultar os juízes do Palácio Ratton, onde funciona o TC.

Várias vezes, o Presidente foi instado a pedir a verificação preventiva da constitucionalidade, tanto por partidos, como por organizações. Nunca cedeu. Por duas vezes foram os partidos a pedir a fiscalização. Por duas vezes venceram. E por duas vezes o Presidente perdeu. Perdeu a razão e perdeu na sua dimensão de defensor e garante da Lei Fundamental.

Primeiro, foi o caso da maternidade de substituição, mais conhecida pelo termo barriga de aluguer. O Presidente ainda vetou, logo em 2016, a primeira versão da lei das barrigas de aluguer, mas logo logo o promulgou, apesar de achar que não era a melhor solução.

Os deputados do CDS, com o apoio de vários sociais-democratas, fizeram um pedido de fiscalização sucessiva da lei. Para o fazer, é necessário um mínimo de 23 deputados (um décimo do Parlamento) e não há prazo fixado para o Tribunal se pronunciar, ao contrário do que sucede na fiscalização preventiva, que tem prazo máximo de 25 dias, que ainda pode ser reduzido se o Presidente invocar urgência.

Os deputados pediram e o Tribunal deu-lhes razão passados quase dois anos da promulgação da lei. A lei voltou ao Parlamento para alterações, mas sobretudo graças ao PSD, não foi possível uma alteração substancial, pelo que a lei que voltou a seguir para Belém continuava tão inconstitucional como a versão que já tinha sido apreciada.

Aí, não restou alternativa a Marcelo que não fosse enviar pela primeira vez uma lei para o TC. E o TC, naturalmente, reafirmou a sua posição. E o Presidente vetou como tinha de fazer.

No que diz respeito à chamada lei dos metadados, o processo é muito semelhante. Em causa está a possibilidade de os serviços secretos terem acesso a informações sobre comunicações (listagens de chamadas e não o seu conteúdo) ou sobre deslocações como forma de combate ao terrorismo e à criminalidade.

A medida tem o apoio de PS, PSD e CDS que, já na legislatura passada, tinha aprovada uma lei nesse sentido. O então Presidente Cavaco Silva, apesar de concordar com a lei - fez questão de o dizer expressamente -, enviou-a para o Constitucional, que a declarou não conforme à lei fundamental.

Nesta legislatura, a nova lei foi aprovada e prontamente promulgada pelo Presidente Marcelo, apesar dos apelos de PCP e Bloco de Esquerda para que a enviasse para o TC. Marcelo não enviou e, mais uma vez, foram os deputados, desta vez da esquerda, a juntarem-se para pedir fiscalização sucessiva. E, dois anos depois de a lei ter sido promulgada, o Tribunal decidiu, dando-lhes razão. Dando-lhes razão, sobretudo, nas dúvidas, tal foi a divisão entre os juízes, como se pode ver pela votação e pelas declarações de voto. (Para quem tiver dificuldades em perceber o ‘jurídico-constitucionalês’ recomendo a leitura da declaração de voto de João Pedro Caupers.)

Será já um novo Parlamento, com um equilíbrio de forças diferente, a resolver as inconstitucionalidades da lei dos metadados e voltar a discutir as barrigas de aluguer, que o Bloco já anunciou que levará de novo a plenário.

Mas será o mesmo Presidente a voltar a receber os diplomas sobre estes dois assuntos, que podem dizer quase nada à maioria da população, mas dizem muito sobre o que somos como sociedade. Veremos, então, como Marcelo aprendeu ou não estas duas lições de Direito Constitucional.