Maior cidade romana do país à mercê de interesses imobiliários
09-11-2015 - 08:51
 • João Cunha

Necrópoles, habitações, edifícios com mosaicos, balneários, tanques de salga de peixe, cerâmica, moedas e muito mais compõem o património arqueológico de Luz de Tavira ameaçado com o esquecimento.

Em 1866, os arqueólogos Estácio da Veiga e Teixeira de Aragão realizaram as primeiras escavações em Luz de Tavira. Mas só em finais dos anos 70 se realizou o único relatório técnico arqueológico. Desde então, a cidade romana de Balsa, um dos mais brilhantes centros urbanos do Portugal romano, caiu no esquecimento.

Autor do relatório técnico, Manuel Maia foi um dos arqueólogos que, em 1977, fez parte da equipa que ficou deslumbrada com a descoberta desta cidade romana à beira-mar, na Quinta da Torre D´Aires.

“Começámos a escavar às cegas, porque à superfície não se via nada. Eu escavei na parte mais baixa e apanhei o esgoto das termas. O Quartim Ribeiro escavou no vale e apanhou-se uma lixeira dentro de uma casa arruinada, com coisas absolutamente espectaculares. A minha mulher (Maria Garcia Pereira Maia) escavou mais abaixo, num complexo de salga de peixe. Cetárias, umas a seguir às outras. Estávamos absolutamente deslumbrados”, descreve.

Na Quinta Torre de Aires há ainda necrópoles, uma parte habitacional, edifícios com mosaicos, balneários, tanques de salga de peixe, cerâmica e moedas.

Fora da zona classificada como património arqueológico e Zona Especial de Protecção haverá ainda aquedutos, necrópoles, fornos industriais, um hipódromo e algumas vilas suburbanas. A dimensão dos vestígios é imensa e não há nada comparável em território nacional.

“Conímbriga ao pé daquilo é uma pequena cidade de província... Mesmo Lisboa era mais pequena. Balsa era uma super cidade portuária”, sublinha Manuel Maia.

Ao longo dos anos, a área com valor arqueológico - muito maior do que o sítio classificado - foi sendo destruída.

Há proprietários de moradias, fora do sítio classificado, que durante a construção, descobriram termas romanas. Estas ou foram destruídas ou que ainda estão nas caves dessas moradias. Outros dão-se ao luxo de ter paredes de casas de banho forradas a pequenos mosaicos romanos.

A estação romana da Luz está numa área sob forte pressão imobiliária - mas não há uma estratégia de salvaguarda. As obras levadas a cabo em zonas com possível valor arqueológico, fora do sítio classificado, não são acompanhadas pelas autoridades responsáveis pelo património.

Balsa foi completamente abandonada

“Abandonaram aquilo”, diz Manuel Maia. “Não sei os interesses económicos que estão por detrás e que estiveram sempre por detrás. Foram autorizadas construções por todo o lado. O que é que está por detrás disso não sei: interesses partidários? Interesses económicos? Não sei.”

Macário Correia, antigo autarca de Tavira e um dos defensores de Balsa, ainda tentou um acordo com os proprietários para salvar e aprofundar os conhecimentos sobre aquele património.

“Tive por um triz um acordo com os donos do terreno, para se fazer uma candidatura para uma investigação mais profunda, através de tecnologias radiológicas mais especializadas, em fazer a escavação do terreno em si”.

O actual autarca, Jorge Botelho, considera essencial defender este património. “ É do interesse do município preservar Balsa. Até que um dia, estejam reunidas as condições para a trazer à luz do dia”.

Os terrenos classificados, propriedade de privados, foram utilizados em agricultura ao longo dos anos. Mas agora, foram destruídos, em parte, com obras de construção de estufas de frutos vermelhos que obrigam a terraplanagens e à instalação de sistemas de rega escondidos em valas de alguma dimensão.

As denúncias da população e as perguntas da Renascença sobre o assunto levaram as autoridades a actuar. As obras foram travadas pela comissão de coordenação e desenvolvimento regional do Algarve, depois de uma fiscalização realizada em conjunto com a GNR e com a Direcção Regional de Cultura do Algarve, responsável pelo património da região.

Alexandra Gonçalves, directora regional de cultura do Algarve, diz que “notificaram o proprietário e arrendatário de que teriam de parar de imediato. Há que verificar agora o prejuízo que foi feito a este património”.

O auto de embargo das obras, da CCDR Algarve, não refere, em nenhum momento, que ali existe também uma Zona Especial de Protecção devido à riqueza arqueológica. As obras são travadas porque foram feitas, sem qualquer autorização prévia, em zona de Reserva Ecológica Nacional.

Assim sendo, o arqueólogo Manuel Maia vai mais longe. “O que era necessário era realmente classificar e obrigar a cumprir a classificação. Doa a quem doer. E depois então escavar e aproveitar turisticamente. Isso sobre o ponto de vista é uma mais-valia. Em qualquer sítio do mundo.” Mas pelos vistos, não em Portugal.