​Daniel Sampaio pede Igreja e sociedade civil mais “empenhada” no combate aos abusos sexuais
05-05-2022 - 07:04
 • Ana Catarina André (Renascença) , Daniela Carmo (Público)

Em entrevista ao programa "Hora da Verdade", da Renascença e do "Público", o psiquiatra e membro da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos de Menores na Igreja (CIEAMI) esclarece que a comissão não falou em encobrimento por parte de bispos no ativo, mas em “ocultações”, e sublinha a importância de membros da hierarquia pedirem perdão publicamente.

A Comissão Independente foi constituída há quase quatro meses, que balanço faz deste período?

É um balanço de muito trabalho, temos procurado recolher testemunhos e validámos, até ao momento, mais de 300 testemunhos. Necessitamos da comunicação social para que o nosso apelo ao testemunho continue. Temos encontrado uma boa recetividade por parte das instituições que trabalham com crianças e jovens e, de uma forma geral, temos tido também um bom apoio da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP). Como é sabido, foi a Conferência Episcopal que, em dezembro, nomeou o doutor Pedro Strecht como coordenador e ele depois constitui a equipa. Esse apoio da CEP é fundamental para conseguirmos prosseguir o nosso trabalho.

Sabendo que o método de investigação usado pela comissão independente difere de métodos utilizados noutros países, alguns deles contestados como por exemplo em França, como é que chegaram a este método?

Temos semelhanças com o que se passa noutros países. [O método da comissão] é diferente do de Espanha, por exemplo, em que há uma firma de advogados que faz esse trabalho. Mas na Bélgica, na Irlanda, na França são comissões parecidas com a nossa. Nós preocupamo-nos sobretudo com as vítimas. Como o nosso lema diz, nós queremos dar voz ao silêncio. Queremos que as vítimas testemunhem porque o simples facto de testemunhar constitui uma reparação muito importante para a vítima.

Ou seja, a vítima está durante muito tempo envolta na sua culpa, na sua vergonha. Aquilo que pode ter confidenciado a algumas pessoas não foi validado e esse é um aspeto central: a validação que nós fazemos de uma queixa de abuso sexual. Essa queixa muitas vezes não é validada pela família, pelos professores ou pelos amigos.

Estas pessoas estão envoltas num manto de silêncio, de culpa e de vergonha. O simples facto de testemunharem é importante, através do telefone ou através do e-mail e algumas fazem-no presencialmente.

O que pensamos concluir deste estudo é podermos ter uma perspetiva preventiva, podermos recomendar às instituições, que lidem com crianças, medidas no sentido de este comportamento não se repetir. Esse é o estudo fundamental.

Qual é a sua intervenção especificamente atendendo a que é psiquiatra, está mais direcionada para esta área da triagem dos testemunhos?

Não, não sou eu que atendo o telefone. Quem atende o telefone é uma assistente social, membro da comissão, a doutora Filipa Tavares. O meu trabalho é nas reuniões presenciais. Tenho estado em todas as entrevistas presenciais e também nas entrevistas aos senhores bispos. Esse tem sido o meu papel dentro da comissão, além de discutir todas as questões que se levantam porque todos os dias se levantam questões porque praticamente todos os dias há testemunhos e é preciso também dar uma resposta ao enquadramento desses testemunhos.

Quais são as questões mais difíceis de dirimir, já que os testemunhos levantam inúmeras questões que têm a ver com os sítios onde terão ocorrido ou os autores dos crimes?

No fundamento não temos nenhuma dúvida: ninguém inventa as histórias que nos contam. São histórias de grande sofrimento e o nosso inquérito está construído com uma consistência interna que qualquer pessoa que tente preencher o inquérito a brincar, nós percebemos. As perguntas têm uma coerência.

Além disso, a situação é de tal modo difícil para as pessoas falarem que ninguém inventa os pormenores com que o inquérito é feito. É justamente a validação do testemunho que não tem levantado problemas nenhuns.

Há [também] uma questão muito importante que é o apoio às vítimas. A comissão não é uma comissão de saúde mental nem uma linha aberta para as pessoas falarem. Portanto, temos encaminhado algumas pessoas para seguimento psicológico e psiquiátrico. Não encaminhamos, aliás, recomendamos.

Em situações que foram detetadas em que há um padre que cometeu um abuso sexual, em que há indícios por parte da vítima de que tenha sido o padre “x”, há a preocupação de saber onde é que esse padre poderá estar. Porque sabemos que, em muitos casos e à semelhança de outros países, esses padres são transferidos para outras dioceses, para outros locais. E essa é uma preocupação que está entregue ao Ministério Público, que é os casos que estão de alguma forma ativos. Nós podemos ter uma ação também sobre a pessoa que fez o abuso porque isso é preocupante, porque o abuso sexual é compulsivo por parte do abusador. É altamente provável que essa pessoa repita o seu comportamento noutro contexto.

Das denúncias recebidas, 16 delas que ainda não prescreveram foram enviadas para o Ministério Público (MP). Qual é o ponto de situação à data de hoje? Foi aberto algum inquérito?

Sobre o MP, a única coisa que sabemos é que entregámos esses 16 casos e que foram distribuídos por vários procuradores. Está tudo em segredo de justiça. Neste momento não sabemos o que é que se passa.

Pessoalmente, eu espero que o MP atue rapidamente porque se trata de circunstâncias muito concretas, alguns crimes não estão prescritos e noutras situações existem indícios de que foram padres abusadores e, portanto, o MP tem de atuar em relação a essas pessoas.

E pelo facto de a maioria das denúncias serem anónimas, há aqui uma dificuldade acrescida para a investigação dos próprios dados?

É verdade, essa é uma dificuldade que o Ministério Público está com certeza a resolver. Mas às vezes a queixa não é anónima em relação ao abusador. Nós não sabemos a identidade da vítima, mas há referências, não em muitos casos, concretas que foi o padre “X”, o acólito “Y”, a freira “Z”. As pessoas vêm nomeadas e vêm nomeados os sítios onde ocorreu abuso, seja no seminário, no colégio. Há algumas pistas para a investigação. Evidentemente que a investigação destes casos é sempre difícil também por uma questão muito importante: é não existirem testemunhas diretas porque o abuso sexual é feito em segredo.

Ainda sobre a atuação do Ministério Público, o facto de as denúncias não estarem a ser tratadas de uma forma centralizada poderá gerar algum tipo de dispersão nos critérios de investigação?

Espero que não. Não quero comentar a atuação do Ministério Público, mas espero que não. O meu propósito é que a investigação do Ministério Público seja célere e eficaz. Devemos, aliás, como sociedade, chamar a atenção para o Ministério Público da urgência de clarificar porque é preciso chegar a conclusões. Nalguns casos não se chegará, mas nalguns, com certeza, chegar-se-á.

Como é a Comissão vai tratando a informação que recebe? Ou seja, com que regularidade é que a envia ao Ministério Público, por um lado, e, por outro lado, vai partilhando essa mesma informação com a Conferência Episcopal?

Não, com a Conferência Episcopal não partilhamos a informação. Trabalhamos de uma forma independente. Temos reuniões, tivemos duas reuniões com a Conferência Episcopal, uma com o Conselho Permanente da Conferência Episcopal e outra, mais recentemente, no dia 26 de abril, em que toda a comissão foi a Fátima para uma reunião da Conferência Episcopal em que demos conta do nosso trabalho, mas não partilhamos dados sobre as pessoas e temos autonomia de funcionamento.

Por exemplo, quando nos foi perguntado se havia situações de ocultação na Igreja, quero esclarecer essa situação. Nós não queremos lançar suspeitas sobre ninguém, não é esse o nosso propósito. O nosso propósito é de colaborar com a Igreja, até porque foi a Igreja que mandatou o doutor Pedro Strecht para constituir essa comissão e aceitou a constituição da comissão.

A nossa posição é de colaboração. Mas evidentemente que houve pessoas ligadas à Igreja que ocultaram, como acontece sempre, porque a ocultação é absolutamente uma característica deste problema. As pessoas escondem esse problema. Quando nós dizemos que houve pessoas da Igreja que não validaram as queixas, isso era algo inevitável. Até porque primeiro há uma descrença no que a vítima diz e, depois, porque são acusações muito graves que têm consequência para o alegado abusador.

Não foi, nesta fase em que nos encontramos, remetida informação à Conferência Episcopal sobre aquilo que terão encontrado ao longo destes três meses?

À Conferência Episcopal foi dito o número de abusos que existe e foi discutida a metodologia. Nós enunciámos a metodologia de trabalho e fomos à Conferência Episcopal fazer o balanço do nosso trabalho. Agora temos um trabalho também conjunto com a Conferência Episcopal, que tem a ver com a abertura dos arquivos, onde está uma equipa de historiadores chefiada pelo professor Francisco Azevedo Mendes, da Universidade do Minho, que vai, junto de cada diocese e de acordo com cada bispo, ter uma metodologia de estudo sobre o arquivo dessa diocese.

O método de consulta desses arquivos já está definido?

Está a ser definido diocese a diocese. Isso não é uma competência da Comissão. Nós delegámos o estudo dos arquivos nesse grupo de historiadores especialistas em arquivos.

Na última conferência de imprensa da Conferência Episcopal, D. José Ornelas disse ser descabido falar em encobrimento nesta fase por não ter essa informação. É este esclarecimento que está a fazer agora, de que essa informação também não lhe chegou?

Isto tem a ver com a palavra encobrimento porque encobrimento é um crime, é esconder uma determinada situação. Nós não falamos de encobrimento. Foram os senhores jornalistas que têm levantado essa questão. Nós falamos de ocultações, como eu disse, que acontecem em todas as situações de abuso.

Evidentemente, na conferência de imprensa [mais recente da comissão independente] foi perguntado se havia pessoas que estavam ligadas à hierarquia da Igreja que tinham ocultado esta situação, nós respondemos que sim. Isso é-nos transmitido pelas vítimas. As vítimas transmitiram-nos que falaram com pessoas da hierarquia da Igreja e que a sua queixa não foi validada, não houve uma consequência da queixa. Mas repito: isso acontece na Igreja e acontece nas famílias. É uma característica desta situação.

Desde que foi criada, a comissão tem optado por divulgar informação regularmente. Atendendo a que o estudo ainda está a decorrer não teme estar a ser divulgada a informação que ainda não corresponde totalmente à verdade?

Sobre os 300 e tal testemunhos não tenho a menor dúvida de que correspondem à verdade. No outro dia, um colega vosso perguntou-me: “Mas esses 300 e tal casos são de pessoas vítimas que falam ou pessoas a dizer e a fazer uma denúncia?”. Não, quero deixar bem claro que são 300 e tal. Divulgaremos o número exato no nosso encontro de terça-feira, na Gulbenkian, onde vamos fazer um encontro científico. Ultrapassámos os 300 casos e são casos de pessoas que falaram diretamente connosco.

Temos a certeza de que essa informação é absolutamente fidedigna e foi validada por toda a comissão. Agora, precisamos de o fazer. Porque o facto de divulgarmos que existem estes casos é um apelo a que a pessoa se junte a nós. Vamos supor uma vítima que está algures em Trás-os-Montes numa aldeia e ouve na televisão o Dr. Pedro Strecht dizer que temos 300 pessoas que fizeram um testemunho. Essa pessoa começa a pensar: “eu tive este problema, será que eu devo testemunhar também? Será que é importante para mim testemunhar? E é importante para outras pessoas que eu testemunhe?”.

Esse balanço tem que ser feito regularmente, senão este assunto cai no esquecimento e nós queremos manter este assunto completamente vivo. O que mais me tem impressionado nesta situação toda é o pouco empenhamento da chamada sociedade civil nesta causa. Seria preciso que pessoas com protagonismo que possam aparecer na rádio, na televisão, nos jornais tratem desse tema. Encontramos praticamente zero. Pessoas com responsabilidades a nível da comunicação social que possam promover jornalismo de investigação, era fundamental para ir aos diversos sítios onde há queixas...

É como se as vítimas estivessem isoladas e de alguma forma a comissão tivesse um pouco isolada da comunidade. Ora, nós somos todos pessoas participantes na sociedade civil e com algumas provas dadas de trabalho na comunidade e impressiona-me um bocadinho que esta causa não mobilize mais as pessoas. A própria comunicação social que nos tem apoiado na divulgação destes resultados devia empenhar-se muito mais em estudar o problema. Estudar o problema sociologicamente, ir ao terreno, entrevistar as vítimas, não as nossas, mas outras de padres que já foram condenados e trazer testemunhos também que possam ser exemplo para que outras pessoas possam falar deste silêncio que durante tanto tempo mantiveram.

Refere-se também a instituições da sociedade civil, escolas?

Sim, uma mobilização que não temos conseguido e que seria fundamental porque existem situações de abusos sexuais ocorridas em colégios religiosos. O contexto é muito diverso: pode ser o seminário, uma sacristia, a casa de um padre, o carro de um padre, um colégio. Há muitos contextos e por isso é preciso estarmos muito atentos ao que se passa e sobretudo ajudar os nossos jovens a estudarem mais atentos.

Felizmente, os casos recentes são muito menores do que os casos antigos. A legislação mudou, os jovens, crianças e adolescentes estão mais atentos a este problema e têm uma maior noção da privacidade do seu corpo como um território absolutamente sagrado. Só devemos deixar mexer no nosso corpo quem nós entendermos que deve mexer no nosso corpo.

Há crianças que foram abusadas na altura da infância e só mais tarde quando começam a ter um namorado/a e uma vivência sexual diferente é que tudo o que se passou atrás na infância vem ao de cima. Por isso é que a educação sexual nas escolas é fundamental e que continue e que se promova e melhore o conhecimento das famílias deste problema é essencial para a prevenção.

Falou de colégios. Na última conferência de imprensa, disseram também que terá havido abusos por parte de leigos ligados à Igreja católica, nomeadamente, escuteiros e professores de religião e moral. Esses abusos poderão ter acontecido mesmo nas escolas da rede pública?

Sim, na rede pública e na rede privada. São pessoas ligadas à Igreja em que, por exemplo, no contexto de um padre professor de religião e moral e nos escuteiros - é de conhecimento público - que houve casos por parte de determinada pessoa que está muito bem inserida na sociedade. Isso vem descrito em vários sítios.

O abuso sexual pode ocorrer em todas as situações em que há um grande contacto de proximidade entre um adulto e uma criança e em que o adulto tem uma situação de poder em relação à criança. Não tem nada a ver com a sexualidade dita normal entre duas pessoas com livre consentimento na exposição do seu corpo e na partilha das sensações a nível dos seus corpos. Aí há um livre arbítrio que é completamente diferente da situação de abuso.

Na situação de abuso, há um adulto que tem uma desregulação emocional, no abusador não há controlo ou inibição interna, há um prazer em estar com uma criança numa situação de poder e há também muitas vezes à volta uma situação de ameaça. Isso é muito frequente em relação aos rapazes. Quando um homem abusa um rapaz, é muito frequente dizer “Não digas nada a ninguém, senão eu digo que tu és homossexual”. Para muitos jovens, esta acusação é muito difícil de aceitar e por isso esta é mais um mecanismo que o abusador tem para constranger a vítima para que ela não fale. Por isso é fundamental quebrar o silêncio.

A comissão independente disse que cinco bispos não tinham respondido à comissão. Poucos dias depois, alguns bispos vieram dizer que ainda não tinha terminado o prazo para responderem. Confirma que assim foi?

Sim, não vai haver nenhum bispo que não responda. Esse problema está ultrapassado. Tínhamos que dar essa informação porque houve um certo prazo um bocadinho dilatado por parte de certos bispos, mas não houve, da parte de nenhum, oposição a essa entrevista. Julgo que [as entrevistas] vão terminar esta semana. Essas entrevistas têm sido, para mim, uma hora de aprendizagem sobre o funcionamento da diocese, a compreensão das dificuldades que os bispos têm em relação aos poucos recursos humanos que têm para a sua função sacerdotal. Não esqueço, porque trabalhei muitos anos num hospital público, e reconheço o papel importantíssimo que a Igreja Católica tem junto das pessoas vulneráveis, por exemplo, junto das pessoas com perturbação mental.

Foi um meio de pressão para eles acelerarem um bocadinho?

Sim. Admito que sim. Foi um anúncio público de que nós precisávamos para o nosso estudo destas entrevistas todas feitas. São 21 bispos. Se conseguirmos entrevistar os 21, conseguimos tirar uma conclusão sobre os bispos portugueses. Se entrevistarmos 14 ou 13, o estudo fica truncado. Foi aqui um problema de descoordenação, de resposta imediata. Também surgiu muitas vezes na altura da Quaresma. Esse problema está completamente ultrapassado. O que não está ultrapassado é o empenhamento da Igreja Católica.

A Igreja como um todo?

Sim, porque esta é uma causa da Igreja em primeira mão. É fundamental que se empenhe. Pode fazê-lo, por exemplo, através dos sacerdotes que celebram missa poderem fazer um aviso no final da missa e um apelo ao testemunho, à divulgação do nosso cartaz, dos nossos contactos, aparecer nos sites da diocese e não só uma vez... [Precisamos de] apelos ao testemunho, haver declarações de responsáveis da Igreja a pedir perdão às vítimas.

Reparem que só muito recentemente isso aconteceu. Primeiro com o cardeal Patriarca, D. Manuel Clemente, que eu queria saudar. A sua intervenção foi fundamental, foi a primeira pessoa que falou do perdão às vítimas e da necessidade do testemunho. Foi uma declaração importantíssima a que se seguiu depois o presidente da Conferência Episcopal. Foi fundamental essas duas figuras da hierarquia da Igreja falarem e ajudarem as pessoas a testemunhar e para que as vítimas sintam que finalmente a Igreja quer, de alguma forma, atenuar o problema que teve e tomar medidas em relação ao futuro.

E no que toca aos arquivos da Igreja? De acordo com a lei canónica, os depoimentos e denúncias podem ser destruídos.

Acho que não vai haver entrave no próprio interesse da Igreja porque pode criar-se uma ideia, que não é boa para a Igreja e sobretudo para as vítimas, de que há coisas que estão a ser escondidas. Acho que a Igreja vai abrir os arquivos como já abriu noutros países, poderá haver alguma dificuldade pontual nalgum sítio, mas será respeitada a lei civil e a lei canónica. Os arquivos são importantes porque podem deixar perceber alguns movimentos dos sacerdotes que podem ser importantes para perceber o que se passou.

Eu gostaria que as transferências dos padres fossem documentadas e estudadas. O que as vítimas nos dizem é que os padres foram transferidos quando houve uma queixa. Espero que os arquivos possam possibilitar esse estudo, não no sentido de perseguir as pessoas, mas para que se se provar que essa prática existiu, se um determinado alegado abusador foi transferido por um alegado abuso, que essa prática não se repita. Essa prática é que vai permitir perpetuar o problema noutro sítio.

Já começaram a abrir os arquivos?

Abrir propriamente ainda não. Já houve contactos da equipa de historiadores com vários bispos.

Apesar de a maioria das denúncias não ter uma data exata, é possível perceber qual a tendência de evolução deste fenómeno?

O contexto cultural é importantíssimo. Há seguramente mais abusos nos anos 60 e 70, em que havia muito mais pobreza em Portugal, e muitas crianças iam para seminários e institutos religiosos para poderem estudar. Depois, a estrutura dos seminários modificou-se, a legislação também nos anos 90. Agora, esta situação é um crime público. A consciência das crianças e dos jovens melhorou.

A tendência é que a situação felizmente seja melhor. Mas é preciso dizer que o abuso sexual é uma situação relativamente frequente, é mais frequente raparigas, mulheres serem abusadas do que homens. Mas estudos internacionais indicam que 18% das raparigas sofrem uma situação de abuso ao longo da sua vida. Outra consequência de que ainda não falámos e que é muito importante é a repercussão na saúde mental.

Enquanto psiquiatra, como é que uma pessoa pode recuperar de uma situação destas?

Há várias situações. Há estudos que indicam que o abuso sexual só por si é um fator muito importante no aparecimento de uma doença mental mais tarde na idade adulta. É um fator de risco. Na situação das crianças e adolescentes, há dois grupos essencialmente: aquelas vítimas que manifestam imediatamente uma série de perturbações do tipo depressão e ansiedade, situações de pós-stress traumático; e as que não têm esses sintomas, mas têm repercussão no seu comportamento.

Muitas destas crianças vão ter dificuldades na sua vida afetiva ou sexual porque tiveram uma vivência de estranheza muito grande em relação ao seu próprio corpo. É possível recuperar. A primeira coisa que devemos fazer perante uma vítima é protegê-la, validar a sua queixa, dizer “acredito em ti” mesmo que tenhamos dúvidas, para que a criança se sinta acolhida.

Depois, tem que ser apoiada psicológica e psiquiatricamente. Se tiver um bom enquadramento familiar e um apoio a nível da vida amorosa, a criança pode recuperar completamente na idade adulta, mas sempre com um nó cego que foi a sua experiência de abuso sexual. Isso é muito impressionante porque temos testemunhos de abusos que ocorreram há 30, 40 anos. As pessoas fizeram a sua vida, casaram, tiveram filhos, continuam católicas, mas quando recordam o abuso desatam a chorar. Porque naquele momento estão a evocar aquele período que foi terrível. Fica sempre uma marca.