Navegando à vista curta
22-01-2021 - 17:06

O Governo não decide, não pondera, não escolhe, anuncia. Pior: anuncia o já anunciado. Não há comunicação clara, porque não há nada que se possa comunicar com clareza. Melhor: não há nada a comunicar. Pode ser "sim" ou "não" ou "talvez", até ao último segundo.

Quando não há alternativa, a decisão torna-se inútil, ou melhor, torna-se uma ilusão. Chama-se única hipótese, mera contingência, facto consumado, inevitabilidade, ou. como dizem no futebol, correr atrás do prejuízo. É isso, em termos de pandemia, o que o Governo parece estar a fazer. Sem Norte, sem estratégia, a navegar à vista curta, sem liderança, o Governo não decide, não pondera, não escolhe, anuncia. Pior: anuncia o já anunciado. Não há comunicação clara, porque não há nada que se possa comunicar com clareza. Melhor: não há nada a comunicar. Pode ser "sim" ou "não" ou "talvez", até ao último segundo. Medida a medida, tudo depende da temperatura tirada à opinião publica e publicada. Conforme a febre da “discussão” lá se decide internar o doente ou deixá-lo na ambulância mais um pedacinho

Num regime semipresidencialista, é Marcelo que toca a rebate pela decisão. Quarta-feira foi no Porto Canal, às tantas da noite. Os próprios ministros vão caindo que nem tordos, vítimas de COVID ou confinamentos vários. O país está em verdadeiro estado de catástrofe, mas lá se vai andando “com a cabeça entre as orelhas”. Orelhas moucas aos especialistas, que se cansam de avisar que um dia de atraso numa decisão traduz-se em centenas de mortes. Os relatos de médicos exaustos e enfermeiros à beira de um ataque de nervos pontuam os avisos mediáticos. Já toda a gente sabe, já toda a gente viu, professores, pais, autarcas e, claro, o próprio Presidente. Mas os ministros vão ainda reunir-se para ouvir e anunciar, e reanunciar.

Ontem, quando já toda a gente conhecia a decisão, lá se decidiram. Somos invadidos por notícias de modelos matemáticos cujas previsões de evolução de contágios, internados e mortes são revistos diariamente, sempre para pior. Por cada dia de atraso no confinamento geral o custo em vidas será maior . Sete de Fevereiro tornou-se uma espécie de Meca das piores previsões. Se nada for feito, até lá, a data torna-se particularmente terrível porque não há sistema de saúde que aguente. Fez-se, por isso, qualquer coisinha. A medo, como quem pede desculpa não pela indecisão. mas pelas medidas com semanas de atraso. E a história repete-se, em pior. No primeiro confinamento. o efeito de Itália e Espanha funcionou. O povo assustou-se. Agora, habituou-se. Quando as ambulâncias faziam filas à porta dos hospitais de Madrid e os caixões se amontoavam nas morgues de Palermo, os crematórios da Cantábria esgotavam a capacidade e as vítimas aguardavam o luto impossível em camiões frigoríficos porque nos cemitérios já não recebiam mais caixões, em Portugal verificou-se uma espécie de sobressalto cívico e o povo decidiu não mandar mais os filhos à escola, fechar-se em casa, agradeceu a Marcelo a imposição do fecho das escolas e confinou-se como aconselhou o Governo. Como já tínhamos visto em Pequim, em Munique, em Paris, Lisboa ficou deserta e as cidades de todo o mundo puderam ser fotografadas como se fossem maquetes. Sem viva alma a animar as ruas, sem um carro a circular. Parecia que o mundo se tornara o cenário surreal de um filme de terror.

Agora, por ironia, as filas de ambulâncias estão à porta do S. João e de Santa Maria, as transferências de doentes da capital fazem-se para os hospitais de Gaia e Portimão, a mais de 300 quilómetros de distância, há noticias dos turnos de enfermeiros prolongados para além do imaginável (12, 14, 16 horas). Portugal a ultrapassar todos (todos!) os países do mundo em número de mortes por milhão de habitantes. Pior do que os Estados Unidos e o Brasil. Os caixões à espera dias de vaga para cremação não parecem ter produzido mais do que um negacionismo endémico: vai ficar tudo bem. Quando? Como? Porquê? Se nem a vacina da gripe chegou a tempo e em quantidade suficiente ,o que nos leva a acreditar que com a da COVID, com tudo o que ela implica de complicação logística, vai correr melhor?

De três em três dias o Governo avisa que vai anunciar novas medidas, para entrar em vigor três dias depois, quando o cenário já piorou e o Governo já está, por isso, a estudar novas medidas que serão aplicadas daí a outros três dias, para serem alteradas nos três dias subsequentes. O povo anda de cábula: hoje pode passar-se entre concelhos? A que horas é o recolher obrigatório? Os supermercados estão abertos até às 20, ou até às 17? Pode-se ir comprar uma esfregona à drogaria? As grandes superfícies também vendem brinquedos e roupa? Talvez “os chineses” ainda estejam abertos. Afinal onde se come? Padarias abrem, cafés é que não. Restaurantes? Passam outra vez a take away , mas só a partir de sábado, ou será segunda-feira? O comércio pode abrir hoje, mas só das dez ao meio dia e meia. À uma? Tem de estar tudo em casa? Não. Parece que ir para casa pode-se sempre ir a qualquer hora. A lei só entra em vigor publicada em diário da República. Mas isso é quando? O Estado de emergência desceu para calamidade? Ou a calamidade passou a emergência? Estamos em estado de sítio. Mas não sabemos. Ainda ninguém nos disse. Não vamos a sítio nenhum. As filas são para votar? Mas as eleições não são só daqui a uma semana? São. Mas estas filas são para quem no domingo não quer votar com filas. Desta vez, logo a seguir às festas, houve quem considerasse prudente colocar os alunos em quarentena (foi o que decidiu a Universidade da Beira Interior). Pelo sim, pelo não preveniam-se contágios.

No Parlamento, António Costa assumiu o erro da abertura do confinamento na época natalícia. Fica-lhe bem, mas, reconhecido o erro, o melhor é corrigi-lo rápido. Tudo o que não aconteceu, como habitualmente. Pedir desculpa não custa nem conta. Agora, vamos esperar. Ou a curva desce e o povo esquece ou fica na mesma , ou continua a subir. Ninguém sabe. Só sabemos o tempo perdido entretanto. Foi tanto, foi demais. E, pelo meio, vamos ter eleições que, como tudo nas nossas vidas nos últimos meses, serão únicas. E não sei muito bem explicar porquê, mas também podem ser um bocadinho assustadoras. Sobretudo se o medo que não tivemos para ir comprar pão ou passear o cão nos tomar de assalto no domingo, na hora de votar. Pior do que a variante inglesa só mesmo a variante brasileira ou americana, dessas que se reproduzem rápido, mas, sobretudo, deixam sequelas para as quais talvez não se encontre vacinas.

[artigo corrigido - Portugal é o país com mais mortes por milhão de habitantes e não por 100 mil habitantes]