​A vida não é propriedade privada
03-03-2017 - 07:16

Temas como a eutanásia, o aborto e as barrigas de aluguer não podem ser discutidas na esfera da escolha pessoal protegida pela privacidade.

Meu caro Pedro Norton, julgo que partes de pressupostos errados nesta questão da eutanásia. Dizes que tens uma “posição tendencialmente favorável à despenalização da eutanásia” e invocas como argumento a “crença na primazia do valor da liberdade individual”; afirmas que “esta é uma matéria do domínio do privado no seu sentido mais profundo e mais radical”. A minha discordância começa quando usas a palavra “privado”. A vida não é privada nesse sentido, não é privada como se fosse uma coisa.

A tua vida, a minha vida, a vida de todos os indivíduos não são propriedades privadas. A vida é sagrada à luz do direito natural e desta lei constitucional. Portanto, temas como a eutanásia, o aborto e as barrigas de aluguer não podem ser discutidas na esfera da escolha pessoal protegida pela privacidade. Admito que desejes remeter a minha fé à esfera privada. Discordo, mas vejo a lógica (errada) desse raciocínio. Mas já não aceito como válida a ideia de que podemos remeter a escolha da morte para a esfera privada.

A meu ver, dar esse passo é permitir a relativização de um dos poucos valores absolutos que devemos defender: a vida. Se não absolutizamos a vida, absolutizamos o quê? Sem um centro vital, meu caro amigo, o cepticismo que partilhamos corre o risco de cair num cinismo que encolhe os ombros.

Continuo com aquilo que me parece ser a contradição insanável do teu argumento. Dizes que reclamas “o direito a dispor” da tua liberdade “sempre que ela não contenda com a liberdade de mais ninguém”. Sucede que um pedido de eutanásia entra no perímetro da liberdade de outras pessoas. Para começar, entra no perímetro da liberdade dos médicos e enfermeiros. Este tema está enviesado no sentido do sofrimento de quem está doente; esquece-se sempre o sofrimento dos profissionais de saúde que têm de apertar a seringa até ao fim, ou que têm de preparar o cocktail mortal.

Meu caro Pedro, o essencial neste debate não é quem quer morrer, mas quem tem de matar. E, se a lei for de facto aprovada, surgirá em Portugal um cenário macabro já evidente na Bélgica e Holanda: como a maioria dos médicos recorrerá à objecção de consciência, formar-se-á uma pequena clique de médicos da morte. É isso aceitável num hospital? Como dizes na tua coluna, não seria mais proveitoso lançarmos o debate sobre uma estratégia de cuidados paliativos que envolvesse hospitais, lares e apoios ao domicílio de enfermeiras e auxiliares?

O meu terceiro e último ponto já aproveita uma das tuas dúvidas. Com muita razão, fazes uma pergunta: “como se garante, sem margem para dúvida, que alguém está mentalmente são” quando faz aquele pedido? Na minha opinião, esta é uma pergunta retórica, porque uma pessoa minada pela dor já perdeu o livre arbítrio. Como é que alguém torturado pela doença pode fazer escolhas livres e racionais?

Neste sentido, parece-me inaceitável que se aceite como válido o pedido de alguém muito doente e quase sempre sozinho. O que me leva a um escândalo que continua por difundir: na Holanda e na Bélgica, essas cidadelas do “progresso”, psiquiatras já atiram para a eutanásia pessoas com doenças mentais. Como é que uma pessoa inimputável “escolhe” a eutanásia? É uma impossibilidade lógica que esconde este escândalo. Meu caro amigo, julgo que não é preciso ter fé para ver aqui um motivo para não copiarmos esta lei.