Meu caro Pedro Norton, julgo que partes de pressupostos errados nesta questão da eutanásia. Dizes que tens uma “posição tendencialmente favorável à despenalização da eutanásia” e invocas como argumento a “crença na primazia do valor da liberdade individual”; afirmas que “esta é uma matéria do domínio do privado no seu sentido mais profundo e mais radical”. A minha discordância começa quando usas a palavra “privado”. A vida não é privada nesse sentido, não é privada como se fosse uma coisa.
A tua vida, a minha vida, a vida de todos os indivíduos não são propriedades privadas. A vida é sagrada à luz do direito natural e desta lei constitucional. Portanto, temas como a eutanásia, o aborto e as barrigas de aluguer não podem ser discutidas na esfera da escolha pessoal protegida pela privacidade. Admito que desejes remeter a minha fé à esfera privada. Discordo, mas vejo a lógica (errada) desse raciocínio. Mas já não aceito como válida a ideia de que podemos remeter a escolha da morte para a esfera privada.
A meu ver, dar esse passo é permitir a relativização de um dos poucos valores absolutos que devemos defender: a vida. Se não absolutizamos a vida, absolutizamos o quê? Sem um centro vital, meu caro amigo, o cepticismo que partilhamos corre o risco de cair num cinismo que encolhe os ombros.
Continuo com aquilo que me parece ser a contradição insanável do teu argumento. Dizes que reclamas “o direito a dispor” da tua liberdade “sempre que ela não contenda com a liberdade de mais ninguém”. Sucede que um pedido de eutanásia entra no perímetro da liberdade de outras pessoas. Para começar, entra no perímetro da liberdade dos médicos e enfermeiros. Este tema está enviesado no sentido do sofrimento de quem está doente; esquece-se sempre o sofrimento dos profissionais de saúde que têm de apertar a seringa até ao fim, ou que têm de preparar o cocktail mortal.
Meu caro Pedro, o essencial neste debate não é quem quer morrer, mas quem tem de matar. E, se a lei for de facto aprovada, surgirá em Portugal um cenário macabro já evidente na Bélgica e Holanda: como a maioria dos médicos recorrerá à objecção de consciência, formar-se-á uma pequena clique de médicos da morte. É isso aceitável num hospital? Como dizes na tua coluna, não seria mais proveitoso lançarmos o debate sobre uma estratégia de cuidados paliativos que envolvesse hospitais, lares e apoios ao domicílio de enfermeiras e auxiliares?
O meu terceiro e último ponto já aproveita uma das tuas dúvidas. Com muita razão, fazes uma pergunta: “como se garante, sem margem para dúvida, que alguém está mentalmente são” quando faz aquele pedido? Na minha opinião, esta é uma pergunta retórica, porque uma pessoa minada pela dor já perdeu o livre arbítrio. Como é que alguém torturado pela doença pode fazer escolhas livres e racionais?
Neste sentido, parece-me inaceitável que se aceite como válido o pedido de alguém muito doente e quase sempre sozinho. O que me leva a um escândalo que continua por difundir: na Holanda e na Bélgica, essas cidadelas do “progresso”, psiquiatras já atiram para a eutanásia pessoas com doenças mentais. Como é que uma pessoa inimputável “escolhe” a eutanásia? É uma impossibilidade lógica que esconde este escândalo. Meu caro amigo, julgo que não é preciso ter fé para ver aqui um motivo para não copiarmos esta lei.