Ainda há coisas novas a descobrir na Bíblia?
27-04-2018 - 15:22
 • Ângela Roque

Um encontro nacional de biblistas vai analisar os mais recentes avanços ao nível da investigação e definir metas. Até final de 2018 deverá ser publicada uma nova tradução portuguesa dos Evangelhos e dos Salmos.

A Associação Bíblica Portuguesa, que está a preparar uma nova tradução da Bíblia, promove dia 30 de abril, na Universidade Católica, em Lisboa, a jornada de estudos “O Novo Testamento em novas perspetivas”.

Com a ajuda de Santiago Guijarro Oporto, do Instituto Pontifício Bíblico de Roma, os participantes vão analisar os mais recentes avanços ao nível da investigação bíblica e definir metas para o trabalho em que muitos deles estão envolvidos. A ideia é que até final do ano seja publicada uma nova tradução dos Evangelhos e dos Salmos, com comentários que ajudem ao seu estudo e interpretação.

Mário Sousa, pároco de Portimão e presidente da Associação Bíblica, falou à Renascença sobre este encontro e sobre o trabalho específico que têm em mãos, a pedido dos bispos portugueses.

Há novas perspetivas no estudo na Bíblia?

Há novas perspetivas sobretudo na dimensão hermenêutica.

Durante muito tempo o estudo bíblico esteve concentrado no chamado método histórico-crítico, havia uma grande preocupação em estudar a história do texto, desde a tradição oral, depois nas suas tradições escritas, primeiro em pequeninos blocos depois num texto mais composto, e portanto a preocupação era sobretudo diacrónica.

A partir dos anos 80 surgiu um interesse maior sobre o texto tal e qual o temos hoje, em estudar o texto na sua dimensão sincrónica, ou seja, com uma especial dedicação àquilo que podíamos chamar “o mundo do texto”. Este estudo começou a ser aplicado aos Evangelhos que começaram a ser abordados com um novo princípio hermenêutico que é o seguinte: os Evangelhos são uma obra literária, são um relato, e portanto devem ser analisados também como tal. A par disto começou também a haver um interesse crescente sobre o mundo por detrás do texto, ou seja, o contexto social, e aqui as ciências sociais aparecem como uma ferramenta imprescindível e preciosa, um recurso valioso para podermos recuperar os cenários em que os textos foram produzidos. Ora, isto é muito importante para que o sentido do texto não fuja ao seu sentido original.

Uma das conferências deste encontro nacional é, precisamente, sobre “o contributo das ciências sociais para a exegese contemporânea", a outra intitula-se "A investigação recente sobre os evangelhos – consensos e novas interrogações".

E as duas acabam por se completar, porque uma coisa implica a outra. As novas perspetivas no estudo dos Evangelhos têm muito a ver com este contributo das ciências sociais para o estudo do texto bíblico. Nos dois painéis vai intervir o padre Santiago Guijarro, que há muitos anos se dedica a estes temas, é professor catedrático na Pontifícia Universidade de Salamanca, e agora também no Instituto Bíblico de Roma.

E precisam também dessa ajuda porque estão a preparar uma nova tradição da bíblia. Isto acontece a pedido dos bispos?

Num primeiro momento a Conferência Episcopal solicitou ajuda à Associação Bíblica para completar as traduções que já se usam na liturgia, e para o rever de determinadas traduções que pudessem não estar muito fiéis ao sentido original do grego, do hebraico ou mesmo do aramaico. Depois considerou-se que seria preferível proceder-se a uma tradução da Bíblia na sua totalidade. A Associação Bíblica disponibilizou-se para esse serviço e, através quer dos seus membros, quer de outros biblistas do mundo da língua portuguesa, já há uns cinco anos que nos estamos a dedicar a levar a bom porto esta obra.

Quando é que estimam que este trabalho esteja concluído?

É muito moroso, porque havendo muita gente a colaborar, fazer a harmonização das opções de tradução acaba por tornar o trabalho ainda mais demorado. Agora estamos a trabalhar nos Evangelhos e nos Salmos para ver se conseguimos, até final deste ano, fazer uma edição experimental.

E porque é que tem de haver uma edição experimental?

Esta tradução destina-se em primeiro lugar ao povo de Deus, destina-se ao uso na liturgia, à catequese, e a haver um texto “oficial” para os documentos da Igreja, portanto é importante que sintamos se este texto é significativo para as pessoas. Porque a Bíblia não é uma obra qualquer, é um livro de fé, surgiu num contexto de fé e destina-se em primeiro lugar a alimentar a fé.

A Bíblia é o texto fundamental para todos os cristãos, mas sabemos que há ainda muito desconhecimento. Esse também é um desafio para os biblistas, ajudarem quem lê a querer saber mais e a entender o que lê?

Exatamente. E a Associação, independentemente deste trabalho que nos foi pedido pela Conferência Episcopal, já pensou em produzir depois, a partir do trabalho de cada um dos tradutores, um comentário específico a cada um dos Livros, numa dimensão exegética, numa dimensão até filológica, mas também numa dimensão teológica, precisamente para ajudar ao estudo, por um lado científico, por outro também existencial, de cada um dos Livros da Bíblia. Vamos ver se se o conseguimos fazer, é um dos assuntos que queremos conversar na segunda-feira, para ver até que ponto teremos a possibilidade de começar, pelo menos, com os Evangelhos, com um comentário a cada um dos Evangelhos.

A tradução que estão a fazer é uma tradução mais literal. Porquê?

Este trabalho foi-nos pedido de acordo com as orientações da Santa Sé, e as orientações da Santa Sé são que a tradução seja o mais literal possível, precisamente para que quem não tem acesso às línguas originais (hebraico, aramaico e grego), ao ler o texto possa captar o sentido mais literal que o texto tem, para que se possa fazer um aprofundamento mais teológico e mais existencial.

Em 2016 foi publicada uma nova tradução da Bíblia de Frederico Lourenço, que até foi depois Prémio Pessoa. Para o público em geral isto pode parecer confuso? As pessoas podem perguntar-se 'para quê tantas traduções?'. Quais são, de facto, as grandes diferenças entre estas novas traduções? Há uma mais oficial que outra, uma mais fiável que outra?

Frederico Lourenço procurou fazer algo que, de facto, não existia em Portugal, que é uma tradução a partir do texto grego, ou seja, uma tradução de uma tradução. O nosso trabalho é pegar no texto hebraico e no texto aramaico também, e no Novo Testamento que é grego, e fazer uma tradução a partir dos originais. Naturalmente a perspetiva hermenêutica também é um bocadinho diferente. Frederico Lourenço fá-lo como académico, nós procuramos fazê-lo tendo em conta esta perspetiva de que a Bíblia não é uma obra literária qualquer, que surge num ambiente de fé e que se destina, de facto, a responder e a suscitar a fé. As perspetivas são diferentes e eu penso que não se anulam, porque não há uma tradução da Bíblia. A Bíblia tem várias traduções e nenhuma delas esgota esta riqueza, como diz o Evangelho, este “tesouro” de onde tiramos sempre coisas novas e coisas velhas.

Este interesse em termos de estudo e de investigação mostra que ainda há novidades a descobrir na Bíblia?

Há. E todos sentimos isso quando lemos um texto bíblico que já é sobejamente conhecido, há sempre uma palavra que nos toca de sobremaneira naquela leitura, quantas vezes já a tínhamos feito e aquela palavra nunca nos tinha tocado daquela maneira, portanto, se a nível existencial nós sentimos isto, a nível científico também. De acordo com a perspetiva hermenêutica com que nos aproximamos do texto, assim aquele texto é iluminado numa riqueza nova que já lá existia, mas que se calhar não tinha sido iluminada como é agora quando me aproximo do texto com este método, a partir das ciências sociais. Há sempre, de facto, coisas novas a redescobrir no texto bíblico.

Quantas pessoas vão participar no encontro nacional de biblistas?

A Associação tem cerca de 40 membros. Durante a manhã vamos debruçar-nos sobre estes dois temas, e as conferências na UCP com o professor Santiago Guijarro Oporto são abertas à comunidade académica e a todos os que queiram participar. Na parte da tarde faremos a nossa assembleia-geral para discutir questões de pormenor sobre a vida da associação, e faremos o ponto de situação deste processo de tradução da Bíblia para a Conferência Episcopal.