O sangue da guerra ou o sangue do período da mulher – o que é mais chocante?
03-06-2022 - 07:40

A sociedade passa o dia a ver homens a matar e a morrer, mas fica bloqueada ou enojada quando vê uma pequena mancha de sangue do período nas calças de uma rapariga ou mulher. Eu não acho isto moralmente aceitável, e não educo assim. Então eu vou educar a minha filha na ideia de que o sangue que ela terá em breve é mais repulsivo do que o sangue de Putin ou do que o lixo que todos os dias passa na net e na tv? Só podem estar a gozar.

Na aventura que é ter filhos, uma das coisas que eu mais temia era a leitura de livros às crianças. Em primeiro lugar, odeio ler em voz alta (sou o terror oratório da missa). Em segundo lugar, temia pela qualidade dos livros. Achava que os livros para crianças eram demasiado infantis. Ora, claro que há livros demasiado infantis, mas a surpresa, pelo menos para mim, foi a descoberta de um enorme mercado de livros para crianças que são como os filmes da Pixar: sim, são de animação, mas não são só para crianças. Quer no campo didático, quer no campo da ficção e até da poesia, um adulto pode ler estes livros sozinho e em silêncio e, claro, pode lê-los e discuti-los com os filhos.

Este livro de María Hesse, um ensaio biográfico de Frida Kahlo, é um bom exemplo. É, foi e será um bom tema de conversa com a minha mais velha, que já adorava as pinturas de Frida, mas que ainda não sabia nada da vida agitada da mexicana. Não tinha idade para estas conversas sérias. Agora já tem.

Por exemplo, através deste livro, ela fica a saber que no passado a vida de uma mulher podia ser um pesadelo no campo da saúde. O livro mostra bem o atraso que sempre existiu na medicina "feminina". E, tal como Paula Rêgo, Frida pintou a dor feminina, a dor do corpo feminino mutilado pela doença e isso, por vezes, parece que causa mais repulsa ou tabus no olhar da sociedade do que um quadro ou foto de um soldado morto ou estropiado pela guerra. Não é isso estranho?

Numa sociedade viciada em violência e saturada de imagens de corpos mutilados e de mortos, as mulheres ainda têm de esconder o vermelho do sangue da menstruação. Ou melhor, não são as mulheres que escondem; são censuradas. O império Facebook, que faz dinheiro com a circulação de imagens de violência e guerra, que fez dinheiro com a proliferação da imagética do trumpismo, é o primeiro a censurar qualquer foto que mostre uma mulher com uma mancha de sangue do período na roupa. A sociedade passa o dia a ver homens a matar e a morrer, mas fica bloqueada ou enojada quando vê uma pequena mancha de sangue do período nas calças de uma rapariga ou mulher. Eu não acho isto moralmente aceitável, e não educo assim. Então eu vou educar a minha filha na ideia de que o sangue que ela terá em breve é mais repulsivo do que o sangue de Putin ou que o lixo que todos os dias passa na net e na tv? Só podem estar a gozar.

Por favor, parem 30 segundos para passar. O que é mais perturbador? Corpos de homens estropiados e mortos pela guerra na Ucrânia e pela crueldade de um ‘mass shooting’ ou a naturalidade de uma pequena mancha do período nas calças de uma rapariga ou mulher? A primeira é chocante, a segunda nem devia ser chocante, faz parte da vida, do dia-a-dia; mas vivemos debaixo de um código social que permite a visualização até ao infinito da morte e do corpo estropiado pela maldade e, ao mesmo tempo, proíbe a visualização de uma coisa natural e que até está na génese da vida. Frida e Paula Rêgo fazem-nos falta.