As Presidenciais podem ser adiadas? Constituição não prevê, mas há “válvulas de escape”
08-01-2021 - 15:17
 • João Carlos Malta

A ideia de as eleições de 24 de janeiro não se realizarem nesse dia começou com a possibilidade, que resultou das palavras do primeiro-ministro, de repetição das medidas de combate à pandemia de março do ano passado. O adiamento é uma solução inédita, mas pelo menos três constitucionalistas admitem a hipótese.

Uma coisa parece certa e consensual: a Constituição não prevê o adiamento das eleições. Mas o que poderia ser o encerrar de uma discussão, neste caso é só o começo da mesma. Os constitucionalistas ouvidos pela Renascença sobre a possibilidade de alterar a data das presidenciais de 24 de janeiro, afirmam que apesar de ser inédita, a solução existe. O decreto do estado de emergência pode ser “a válvula de escape do sistema” que pode desbloquear a possibilidade de não haver condições para realizar a votação.

Bacelar Gouveia ilustra que “o direito só não tem solução para a morte” e Domingos Farinho acredita que a necessidade, a confirmar-se, obrigará a “uma solução fora da caixa”.

Mas vamos por partes, dos quatro constitucionalistas auscultados pela Renascença, apenas um deles fecha por completo a porta à possibilidade de uma alteração da data das presidenciais. Trata-se de Jorge Reis Novais que garante que para isso suceder, apenas poderia ter por base a impossibilidade de as mesmas não se poderem realizar.

Para Reis Novais, apenas um sismo ou um qualquer outro cataclismo natural seriam motivos de monta suficiente para servir de justificação. “Fora de uma situação dessas em que é impossível a realização do voto, não é possível adiá-las”, garante.

“O Estado de emergência suspende o exercício de alguns direitos, e nessa medida pode colocar limitações à liberdade de circulação de pessoas, ao recolhimento obrigatório. Mas quando se fizer a declaração do novo estado de emergência tem de se prever que esse dia é um dia de votação, e que as coisas têm de ter normais, diferentes”, sustenta.

Por isso, conclui, “não há hipótese senão realizarem-se nesse dia [24 de janeiro]”. Sendo que, devido a alterações várias no regime de voto antecipado, a votação, de facto, já não decorre apenas num único dia.

Também o constitucionalista Domingos Farinho concorda que a Constituição não prevê esse adiamento, citando o parecer de um dos pais do documento, Jorge Miranda. “Essa ideia não foi contemplada para não complicar, ou pôr entraves ou problemas à normal duração dos mandatos”, explica.

No entanto, logo de seguida abre a porta à possibilidade de o adiamento ser uma realidade.

O que pode levar ao adiamento

O mesmo constitucionalista diz que há duas formas que considera “altamente especulativas” de uma alteração de data ir por diante. “Uma que também já foi referida pelo professor Jorge Miranda que não para estas, mas para as próximas eleições, se fizesse uma revisão constitucional prevendo o adiamento, e a possibilidade de desdobramento das eleições. Mas isso não resolveria o problema atual”, refere.

A segunda hipótese, salvaguarda que lhe parece “inapropriada, mas possível”. “Seria suspender a possibilidade de haver eleições. Ou seja, não seria adiar o ato eleitoral, mas suspender a possibilidade de as pessoas irem votar, porque seria um ato que colocaria em perigo a saúde pública. Seria a velha questão de ponderar os direitos fundamentais e optar por um deles”, sublinha.

Farinho fala do decreto de estado de emergência como a válvula de escape do sistema, porque “quando tenho um interesse constitucional que prevalece sobre outro, tenho de arranjar a solução para não o concretizar na prática”.

“Se entendo que é mais perigoso votar do que não ir votar, tenho de ter forma de o fazer”, concretiza.

O debate sobre um possível adiamento das eleições também foi abordado pelo presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, no debate de quinta-feira com Vitorino Silva.

Marcelo garante que, apesar da pandemia, estão reunidas as condições para a campanha eleitoral e para o próprio dia da eleição presidencial, a 24 de janeiro.

Seja qual for o regime de combate à pandemia que estiver em vigor nessa altura.

“Será que o novo regime salvaguarda a campanha eleitoral? Sim! A atividade política está salvaguarda por lei e deve ser salvaguarda em qualquer caso pelo decreto presidencial e pela sua execução. Será que salvaguarda o desconfinamento para o voto? Obviamente que no dia de voto haverá liberdade de circulação, de deslocação permitindo o exercício de direito de voto”, garantiu o Presidente.

Se as condições sanitárias se agravarem

Já Bacelar Gouveia acredita que se as condições sanitárias se agravarem e houver um confinamento geral, o que já foi deixado nas entrelinhas pelo primeiro-ministro António Costa. "Acho que se ninguém poder sair de casa, também não se pode sair de casa par votar. Isso parece-me evidente”, afirma à Renascença.

Bacelar deixa claro que a Constituição não pode ser revista durante a duração de um estado de emergência. Essa questão não pode, portanto, ser colocada.

O professor catedrático pensa que se o estado de emergência optar pelo confinamento, lhe parece lógico que as eleições não se realizem, apesar de salvaguardar que há possibilidade de “pôr a exceção, que é a de sair de casa para votar”.

“Há uma opção política que é o Presidente da República que tem de tomar, e a Assembleia da República também, que é decidir se uma das exceções ao dever geral de confinamento é a de poder ir votar. Acho isso um pouco complicado, porque isso implica organizar mesas, ajuntamentos de pessoas”, defende.

O especialista lembra que além do direito de votar, há a campanha eleitoral, e questiona “como é que se vai fazer, se as pessoas não podem reunir, se não podem haver almoços, nem comícios, nem sessões de esclarecimento”.

Por isso, conclui que “se se entender que do ponto de vista das condições sanitárias, não é possível haver uma campanha de jeito, é possível adiar e não é preciso rever a Constituição”.

Bacelar Gouveia justifica a opinião com o facto de o direito de votar e de fazer campanha não estarem no elenco dos direitos que não podem ser suspensos, citando “o artigo 19 número 6” da Constituição. “Neste momento não estão suspensos, mas podem vir a estar. Podem ser suspensos”, reitera.

O mesmo ilustra o raciocínio com um caso recente. A lei do estado de emergência por altura do Congresso do PCP “dizia expressamente que não podiam ser perturbadas as reuniões dos órgãos partidários.” “Isso é um direito político, e esse está salvaguardado na lei do estado de emergência. O direito de votar não está lá como sendo um direito não suscetível de suspensão”, garante.

Neste ponto, Domingos Farinho nomeando o mesmo artigo 19 da Constituição refere que este “prevê os direitos que não podem ser suspensos, e uma das matérias é a da cidadania”.

Salienta que maioria interpreta a dimensão da cidadania como a “qualidade de cidadão”, mas salienta que “não é absurdo, políticos e outras pessoas, interpretarem que a cidadania inclui o direito de voto”.

A troika necessária

O constitucionalista Paulo Otero assinala também que se o estado de emergência permite a suspensão de direitos fundamentais, por maioria de razão, “o decreto que está subjacente ao estado de emergência pode ele próprio prever regras especiais para a realização do ato eleitoral”.

Otero diz que o estado de emergência é uma constituição excecional. “Há uma Constituição para situações de normalidade, e o estado de emergência ou estado de sítio permite acionar uma constituição para situações de excecionalidade. Com base no decreto que reconhece a existência do estado de emergência é possível não apenas suspender direitos fundamentais como alterar prazos de processos eleitorais”, refere.

Para que isso aconteça explica, que o decreto presidencial do estado de emergência tem de ter a concordância do Parlamento, e a anuência do Governo que é quem mobiliza os meios para a realização dos dias eleitorais.

Por isso, conclui, que o adiamento das eleições é uma “decisão política, conjugando as três ordens politicas de soberania”.

Quais os cenários?

O professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Domingos Farinho, acrescenta ainda que “há aqui uma conjução de variáveis que implicam que haja soluções fora da caixa, porque não há nenhum regime previsto para o adiamento das eleições”. A Constituição fala apenas do adiamento de datas na hipótese de as eleições não se poderem mesmo realizar.

Mas no caso de o adiamento ser um cenário que se concretize, o que vem a seguir? Bacelar Gouveia diz que o mandato de Marcelo Rebelo de Sousa se prolonga automaticamente até que tome posse o novo presidente “quando houver condições sanitárias para se realizarem as eleições”.

E o novo presidente terá um mandato menor? A resposta é não. “Imagine que as eleições são adiadas para daqui a seis meses, o novo presidente terá sempre um mandato completo de cinco anos, e este que termina estará cinco ano mais uns meses”.

“Isto não está escrito na Constituição, mas é a logica constitucional”, salvaguarda.

Por fim, Jorge Bacelar Gouveia chama a atenção para que, se houver confinamento geral, como o que aconteceu em março, “as pessoas com medo não vão votar e esse é o problema”. “Vamos ter eleições com participação de 20%. Isso é uma fraude completa à democracia. Corremos esse risco”, remata.