"Acho que não é possível russos e ucranianos viverem em paz nas próximas décadas"
17-05-2022 - 20:34
 • João Carlos Malta

Oksana Pokalchuk, diretora executiva da Amnistia Internacional – Ucrânia, esteve em Lisboa esta semana, ela que tem sido uma das principais vozes daquele país na denúncia de crimes de guerra que ali estão a acontecer. Em entrevista à Renascença, antevê a deterioração das condições de vida na Ucrânia com o Inverno que agravará os já existentes problemas de habitação.

Oksana Pokalchuk tem sido uma das principais vozes de esclarecimento e de exposição dos abusos de direitos humanos cometidos na Ucrânia, quer através da sua conta de Twitter, quer em entrevistas dadas a media internacionais. Recentemente, no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, apelou ao apoio para uma abordagem abrangente e ambiciosa da responsabilização a longo prazo na Ucrânia.

Em entrevista à Renascença, revela os problemas existentes na investigação de crimes de guerra, e em levar os responsáveis à justiça. Está preocupada com a chegada do Inverno, porque a situação da habitação no país é catastrófica e o frio levará ao agravamento da já problemática situação de saúde pública.

Oksana revela ainda o paradoxo entre a necessidade de preservar provas, que em muitos casos são casas destruídas, e a vontade das pessoas de começarem a reconstrução do país. Pensa que a saída de Putin não resolverá o conflito e não está otimista relativamente à possibilidade de uma paz duradoura.

Morou em Irpin durante quatro anos. Como era a cidade antes da guerra? E como é agora? Como é que as pessoas mudaram?

Antes da guerra era uma cidade muito boa para viver. Estava cheia de famílias jovens com crianças. Não era fácil encontrar um apartamento, e era mesmo um desafio encontrar uma vaga para uma criança num jardim de infância, por causa do número de famílias com filhos.

A cidade era mesmo muito agradável. Tinha muitos parques e um rio. Eu gosto de correr, por exemplo, e era um bom lugar para fazer jogging.

Era uma cidade vibrante…

Era parecida com Bucha. Tinha muitas casas construídas dentro da floresta, e era um bom lugar para viver também.

Havia muito verde à volta, mas agora a situação, claro, mudou. As estradas estão danificadas ou destruídas, e muitas casas também estão destruídas totalmente ou parcialmente.

Portanto, neste momento, é impossível viver lá. Outro grande problema é, claro, a eletricidade. Mesmo sabendo que as autoridades locais fizeram um ótimo trabalho para trazer energia, de volta, às pessoas, este ainda é um grande problema. O mesmo acontece com o abastecimento de água.

Diria que são cidades-fantasma atualmente…

Sim, podemos dizer isso. Algumas pessoas estão a voltar para casa, porque não têm outro sítio para morar. Querem muito voltar, reconstruir as suas casas, reconstruir as ruas e fazer todo o possível para ter a vida antiga de volta.

Mas, na realidade, é impossível. É impossível voltar facilmente, porque muitos quintais das moradias são lugares onde as pessoas foram queimadas ou onde as pessoas foram enterradas. Havia por toda parte. Eu entendo porque é que as pessoas querem voltar a recuperar as suas vidas, mas essas cidades nunca mais serão as mesmas que eram, antes da guerra.

Há quem diga que a Ucrânia está a ganhar a guerra, mas podemos mesmo dizer isso quando falamos de um país com seis milhões de refugiados e oito milhões de deslocados internos. Quais serão as consequências desse êxodo?

Estamos a viver uma catástrofe humanitária, e a situação está-se a deteriorar-se. Não temos casas suficiente para as pessoas viverem. Há projetos para dar uma residência temporária às pessoas cujas casas foram destruídas por causa da agressão russa.

Mas todas essas casas temporárias, não servem para o inverno. O inverno na Ucrânia é frio, muito frio. E todas essas construções temporárias não têm aquecimento, não têm proteção adequada.

Por isso, são uma solução apenas por alguns meses. Mas não temos nenhuma ideia de como poderemos dar casas às pessoas para morar durante o inverno.

A situação vai-se deteriorar?

Sim, está a piorar. Aqueles que conseguiram voltar a casa e foram bem-sucedidos, tiveram a oportunidade de ter dinheiro para reconstruir o prédio em que moravam e estarão mais ou menos bem. Mas a maioria das pessoas não tem para onde voltar. Alguns deles são, por exemplo, de territórios ocupados.

Não podem voltar, porque serão mortos. Alguns são de cidades que estão totalmente destruídas e o governo não tem dinheiro para reconstruir esses prédios. Em geral na Ucrânia, não há dinheiro para a habitação. Eu acredito que mais perto do outono teremos um grande problema com esta situação e um enorme problema de saúde pública, claro, porque viver num clima tão frio terá consequências no aumento de problemas de saúde.

Qual é a situação das crianças e dos idosos na Ucrânia, neste momento? A ajuda humanitária está a chegar da maneira que as pessoas necessitam?

Muitas crianças perderam as famílias. Muitas crianças estão agora sem apoio familiar, porque os pais foram mortos.

Muitos menores ficaram com deficiências por causa dos ferimentos que sofreram, por causa do ataque dos soldados russos.

O apoio às crianças não é feito de ações isoladas, é um processo contínuo. É importante obter apoio de organizações internacionais que sabem como apoiar crianças vítimas ou sobreviventes de guerra.

E, claro, é importante obter apoio da comunidade internacional. Às vezes ao recebê-los em outros países, e, às vezes, apenas apoiando as crianças. É importante para elas saberem que não estão sozinhas e que alguém quer saber delas, que alguém se importa com elas.

Neste momento, essas organizações estão no terreno? Em quantidade suficiente?

Pelo que sei, até agora, não é o suficiente. As organizações que estão agora a trabalhar no terreno, não têm acesso, por exemplo, aos territórios ocupados. E só podemos imaginar o que está a acontecer lá. Ouvimos apenas rumores sobre como as crianças são tratadas na Rússia.

Acho que a comunidade internacional tem que dar mais atenção às crianças na Ucrânia, e àquelas crianças que foram retiradas do território ucraniano e enviadas para algum lugar na Rússia.

Há muitos relatos de violações e tortura de mulheres ucranianas por soldados russos. Quais são as dificuldades em provar e documentar estes casos para levá-los ao tribunal?

Em primeiro lugar, é a preservação de provas porque muitas violações foram cometidas durante o período de ocupação. Muitas provas desaparecem com o tempo.

E também é muito importante para as autoridades de investigação terem rapidamente acesso direto à vítima de, por exemplo, violência sexual ou tortura, para fazer um exame forense.

Em muitos, muitos casos, isso aconteceu em territórios ocupados por russos. É por isso que muitas provas, para ser honesta, estão perdidas. Mas penso que na Ucrânia, temos que pensar em como vamos recolher esses indícios, porque a nossa situação não é única no mundo.

Noutros países houve guerras e houve diferentes formas de violação dos direitos humanos, e acho que podemos aprender com outros países o que podemos fazer para tratar melhor os sobreviventes de diferentes formas de violação dos direitos humanos.

Mesmo que não possamos recolher provas adequadamente, talvez possamos encontrar outras maneiras de perceber como essas pessoas podem ser apoiadas e como elas podem encontrar justiça. Normalmente, as metodologias que usamos durante o tempo de paz baseiam-se de forma clássica: investigação e decisão judicial.

Mas nesta situação, talvez possamos pensar de forma abrangente, talvez possamos pensar fora da caixa ou aprender com outros países. Há tantos sobreviventes e tantas vítimas, e temos que encarar que nem todos os que cometeram crimes enfrentarão a justiça, porque isso é tecnicamente impossível.

A Amnistia Internacional, claro, fará tudo o que puder. O nosso principal objetivo é apoiar as vítimas, apoiar os sobreviventes no terreno e lutar pelos seus direitos. Talvez tenhamos que pensar em outras maneiras para se sentirem reparados.

Na declaração ao Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, disse que a vida das pessoas na Ucrânia mudou para sempre. Quais foram e serão as principais transformações?

Muitas famílias perderam os familiares, os entes queridos, os pais, os filhos, os maridos, as irmãs, os irmãos, os vizinhos. As suas vidas nunca mais serão as mesmas. Muitas pessoas perderam as casas, e as cidades e aldeias em que viviam foram totalmente destruídas. Essas pessoas perderam tudo, literalmente tudo.

Eles têm que encontrar força interior para reconstruir as suas vidas e fundar uma ideia de como construir essa nova vida, o que é muito complicado. Sem o apoio adequado, isso nunca vai acontecer, porque vemos agora um grande número de pessoas que sofreu com a guerra. Acho que essas consequências terão um impacto dramático na sociedade ucraniana.

Acha que Vladimir Putin responderá pelos crimes pelos quais ele está a ser acusado na Ucrânia? O Kremlin já disse que não reconhece o Tribunal Penal Internacional…

Espero que o Tribunal Penal Internacional faça uma investigação adequada. E aqueles que são responsáveis por violações dos direitos humanos na Ucrânia sejam acusados, é claro. Não sou o tribunal, não posso decidir por eles, mas tenho expectativas, é claro, de que o próprio Putin tenha de enfrentar uma investigação internacional adequada e seja acusado de violações dos direitos humanos que aconteceram por causa dele, por causa das decisões que tomou, e pelas ações que há anos executa.

Tenho grandes esperanças, grandes expectativas, de que não apenas Putin, mas muitos outros líderes na Rússia sejam sujeitos a uma investigação adequada no TPI e que toda a comunidade internacional tenha acesso a provas adequadas.

Na sua opinião, a saída de Putin do poder é a solução para o conflito? Há informações vindas da Rússia que apontam para a existência de fações ainda mais extremistas no Kremlin….

Não, não penso dessa forma. Não acho que uma mudança no poder irá mudar tudo. Para que haja mudanças reais na Rússia, tem que haver uma mudança democrática real. Se Putin nomear uma pessoa como sucessor, ela continuará a fazer o que Putin disser para fazer. Não é essa a forma de mudar as coisas. A única maneira é a de dar às pessoas o direito de terem eleições democráticas e dar ao povo a oportunidade de decidir o que quer.

Com o conhecimento que tem sobre a sociedade russa, acredita que é possível esse tipo transformação democrática? É algo que possamos ver nos próximos anos?

Acredito que é possível porque os jovens, na sua maioria, não querem a invasão da Ucrânia e desejam parar a agressão. Os russos têm que pelo menos defender os seus familiares, porque, neste momento, na Ucrânia há mais de 20.000 corpos de soldados russos.

A Rússia recusa-se a aceitar que são de soldados russos mortos, e estes estão a ser preservados em arcas frigorificas num grande comboio.

E espero que um dia, quando a Rússia for capaz de aceitar estas baixas, quando as famílias desses soldados lutarem pela oportunidade de receber de volta os corpos dos seus entes queridos, acredito que possa ser um primeiro passo para fazer uma grande mudança dentro da Rússia.

O facto de verem que há pessoas a morrer, e o desejo de o parar, pode ser uma semente para que aconteça alguma coisa.

Ainda acredita numa paz negociada e negociada, neste momento?

Considero importante continuar o processo de negociação. É importante porque todas as guerras têm um fim, e qualquer fim terá de ser colocado num papel, num documento. No entanto, não acho o conflito acabará rapidamente.

Acha que a Ucrânia precisa de um novo Plano Marshall? Quantos anos são precisos para a reconstrução?

Não sei, talvez dez anos, mesmo com todo o apoio que possamos receber do exterior. Será um processo muito longo e doloroso porque um dos problemas que estamos a enfrentar é o da habitação.

As pessoas querem voltar para as suas casas. Querem ter um lugar para viver. Mas, ao mesmo tempo, estas casas destruídas são provas de crimes de guerra. Então temos que manter essas habitações como estão pelo maior tempo possível para dar à investigação uma oportunidade para recolher provas de forma apropriada. Isto para que os tribunais possam saber o que aconteceu.

Há uma tensão latente entre os procuradores e os investigadores e as autoridades locais e os civis, porque as pessoas desejam apenas que as casas sejam reconstruídas e possam voltar à sua vida anterior.

Por isso, respondendo à questão, quanto mais rápido pudermos investigar e conseguirmos trazer justiça às vítimas, mais cedo poderemos reconstruir. Mas de qualquer forma, mesmo com todo o apoio, vai demorar muitos e muitos anos a reconstruir o país porque as infraestruturas principais estão arrasadas. Não são só prédios, são pontes, o abastecimento de água, a eletricidade, as estradas, tudo.

É possível que ucranianos e russos vivam lado a lado em paz nas próximas décadas?

Acho que não. Acho que isso não é possível sem uma mudança consistente na sociedade russa. Os russos têm de aceitar o que fizeram, através dos seus atores políticos. Eles têm que demostrar que estão arrependidos.

Têm que pagar pelo que fizeram. E só depois disso, passado algum tempo, talvez as pessoas na Ucrânia sejam capazes de ouvi-los…

Agora a dor é tão grande que é simplesmente impossível falar sobre essa possibilidade.