A quarentena pascal
01-04-2020 - 06:11

A Quaresma de 2020 foi (e é) a da quarentena, imposta pela pandemia do coronavírus tanto por razões sanitárias como sociais.

Comecemos pelo óbvio. Às portas do Domingo de Ramos não vivemos uma Quaresma como as de anos anteriores. A Quaresma de 2020 foi (e é) a da quarentena, imposta pela pandemia do coronavírus tanto por razões sanitárias como sociais. Na memória do povo de Deus narrada pela Bíblia, particularmente no livro do Êxodo, e no nosso calendário cristão, a Quaresma, totalizando quarenta dias das Cinzas aos Ramos, representa o esforço, o sacrifício, o martírio do povo de Israel que, por quarenta anos, foragido do cativeiro no Egito, errou, no deserto do Sinai, até ser guiado e redimido por Moisés no caminho de volta à Terra Santa. Esses quarenta anos da história bíblica devem ser (re)vividos por todos os cristãos nos quarenta dias de jejum, de penitência, de algum sacrifício e de ascese individual que nos conduzem ao Domingo de Ramos e ao Tríduo Pascal. Ali chegados, ao tempo mais sagrado do calendário litúrgico cristão, há uma sexta-feira santa, um Sábado de Aleluia e um Domingo de Páscoa, celebrativo da ressurreição de Jesus Cristo, que pela sua morte remiu todos os pecados e que pela sua vida de ressuscitado se devolveu à plenitude do Pai.

Estamos ainda na Quaresma e não sabemos por quanto tempo mais em quarentena. Vivemos a mesma suspensão do mundo sentida outrora pelo povo de Deus na fuga do Egito. Infelizmente, sabemos todos quantos habitam o nosso mundo, e ainda mais aqueles que nos hospitais, nos lares, nas morgues, nos difíceis e imprescindíveis trabalhos de hoje, mais lidam com a doença, o sofrimento e a morte, que a situação extraordinária de 2020 é extraordinariamente desafiante e sofredora no pior sentido.

Se a Quaresma significa penitência, a deste ano não poderia ser maior. Porque mesmo os que, com sorte, não lidam diretamente com a doença, estando sãos ou não tendo ninguém de família ou amizade infetado, confrontam-se com todos os outros “vírus” listados numa recente reflexão do Cardeal D. José Tolentino de Mendonça: o vírus do desânimo, o vírus do pessimismo, o vírus do isolamento interior, o vírus do individualismo, o vírus da comunicação vazia em doses massivas, o vírus da impotência ou o vírus das noites sem fim. Os familiares não se podem reencontrar, numa Páscoa que é tempo de encontro, os amigos não se podem rever, em vidas que sem isso ficam mais pobres, os mortos não se podem velar, e todos merecem essa despedida, as ruas não se podem encher, quando o gregarismo é natural ao ser humano, o otimismo e a alegria ficam adiados, porque estamos, quanto ao Covid-19, ainda muito no escuro, tateando a medo os cenários em que queremos acreditar para essa entidade maléfica que se chama curva epidemiológica. Falta-nos o que alentaria o povo de Deus, a saber, a data do nosso Sábado de Aleluia e do nosso Domingo de Ressureição em 2020.

Mas eles virão. Tardam, por ora, mas virão. Porque é da natureza das pandemias diluírem-se na espécie humana, até se tornarem rotineiras ou inócuas, e é da natureza da espécie humana lutar para superar as dificuldades. Foi essa mensagem, de caminho e esperança, que o Papa nos deu na passada sexta-feira, através da sua oração “Urbi et Orbi”. Sob uma chuva miudinha e a luz azulada dos holofotes iluminando a Praça de São Pedro, Francisco desceu aos fiéis para orar com eles e por eles, na emergência global do momento. A imagem do Papa, sozinho, na imensa Praça despojada de tudo foi de uma beleza dantesca, como uma magnífica desolação. Naquela hora, ele foi um de nós e todos nós. A sua solidão foi comovente, porque terrível e inusitada. A sua mensagem foi alentadora, porque de resistência e de fé. E por isso a Páscoa de 2020, que todos queremos, virá decerto, mesmo que mais tardia no calendário dos homens…