​“É possível que todos aprendam e todos avancem e a escola está lá para isso”
26-11-2019 - 07:20
 • Eunice Lourenço

A presidente do Conselho Nacional de Educação defende que é preciso que a escola mude para que a educação continue a desempenhar a sua função

Maria Emília Brederode dos Santos foi uma pioneira na inovação pedagógica em Portugal. Hoje é presidente do Conselho Nacional de Educação e no dia em que é apresentado o relatório anual sobre o estado da educação em Portugal voltar a apelar para que se abandonem ideias feitas e verdades absolutas sobre o que deve ser a escola. E defende um reforço da dimensão educativa nas creches.

A primeira parte do relatório chama-se "À Procura da Mudança". Há vários anos que andamos à procura da mudança na educação, mas não foi o encontrado o caminho, pois não?

Não sei se há só um caminho. Parece-me que, no ano de 2018 demo-nos imenso conta que estava tudo a mudar. A palavra futuro apareceu por toda a parte. Começamos com uma grande conferência, no CNE, sobre os desafios do futuro e as suas implicações para a educação. Foi generalizada essa tomada de consciência. Diria quase que estamos a mudar de era e que as transformações tecnológicas, digitais estão a mudar completamente a nossa maneira de trabalhar, de viver.

E também há a sensação de que a educação não prepara para essa nova era...

Sim, ou, pelo menos, podemos interrogarmo-nos sobre isso. Começo, aliás, a introdução ao relatório, com uma citação muito conhecida do príncipe Salina, em "O Leopardo", em que ele diz "é preciso que alguma coisa mude para que tudo fique na mesma" e costuma usar-se esta citação para falar de falsas mudanças, mas acho que pode ser revertido e pensar que, para que a educação continue a desempenhar as suas funções, é preciso que a escola mude um bocado e andamos, de facto, a interrogarmo-nos sobre o sentido dessa mudança. Tenho certeza de duas coisas: a escola tornou-se uma escola para todos, que não era, e isso tem implicações muito grandes sobre a vida na escola e a outra certeza é que a educação deve ser ao longo de toda a vida. Todos nos damos conta que o mundo do trabalho vai mudar tanto e está a mudar tanto que, obviamente, vamos ter de nos reciclar ao longo de toda a vida.

Mas essa ideia da educação ao longo de toda a vida esbarra com um dos dados do relatório que é uma enorme diminuição na formação de adultos. A que é que atribui essa diminuição?

É uma questão de política. Não foi agora que diminuiu, agora está a subir um bocadinho, não atingiu ainda os patamares que já teve. Foi durante a crise que houve uma grande diminuição, que diria quase cruel porque tinha havido um entusiasmo muito grande das pessoas e houve uma retração enorme com a redução da oferta. Agora estamos a retomar, mas ainda não chega. Nitidamente é uma área em que precisamos investir mais.

Há alguns dados que resultam não tanto do próprio sistema, mas de circunstâncias para além do sistema, nomeadamente a diminuição do número de alunos, que em dez anos diminuiu mais de 400 mil, e o envelhecimento dos professores. Isto tem a ver sobretudo com questões demográficas...

Certamente, mas por outro lado podemos imaginar que o facto de haver mais necessidade de educação em todas as etapas da vida vai aumentar, de certa maneira o número de alunos, embora não nos mesmos níveis de ensino. E o envelhecimento da população docente só significa que uns se vão reformar e que outros entrarão.

Mas para que outros entrem é preciso que sejam formados e outro dado do relatório é que tem diminuído muito a procura da área da Educação no ensino superior. Acha que, no futuro, quando grande parte dos professores que estão no ativo se reformarem, teremos professores suficientes e com qualidade suficiente?

Acho que sim. É uma questão de planeamento e de perceção pela população do emprego. Estou convencida que o retrocesso na inscrição em cursos de formação de professores se deveu, pelo menos em parte, à imagem de que havia professores em excesso e, portanto, haveria falta de emprego. Começamos a notar que, neste momento, já não é bem assim, que já há falta de professores, pelo menos em certas disciplinas, em certas regiões, em horários incompletos. Quando se começar a generalizar essa ideia de que vai haver falta de professores, creio que voltará a haver procura.

Acho que temos de rever a formação de professores, mas o nível de formação dos professores portugueses é um nível bastante elevado, ao nível de licenciatura e mestrado. O problema coloca-se mais na relação com a prática, a questão de haver um ano de prática e inserção na profissão.

Quando fala na necessidade de rever a formação de professores, o que é que sugere?

Sobretudo essa questão da prática. Há muitas coisas que podiam ser revistas, mas aquela sobre a qual nos pareceu haver mais consenso num estudo que fizemos para a Assembleia da República, é este ano de indução, um ano de prática que se desejaria que fosse um ano coorientado pela instituição de ensino superior de formação e por alguém na escola onde o 'professor estagiário' estivesse a praticar.

Outro dado que surpreende no relatório é a diminuição do numero de computadores nas escolas. Numa altura em que o mundo e as crianças são cada vez mais digitais, isto significa falta de meios, não é?

Certamente. Mas é um estudo que tencionamos aprofundar. Por um lado, é falta de meios, por outro lado também fruto da evolução tecnológica hoje os telemóveis já substituem os computadores, são um pequeno computador que temos na algibeira. Temos de jogar com essas duas vertentes

Até porque se fala cada vez mais em manuais digitais e há dificuldade em aceder a manuais digitais ...

Não sou muito defensora dos manuais, nem digitais, nem de papel. São uteis, mas não são imprescindíveis. Acho que muitas vezes os manuais acabam por comandar a pedagogia e a autonomia do professor e isso não acho positivo.

A segunda parte do relatório chama-se "Olhares para o futuro" e tem oito exemplos de escolas que saem da norma, com projetos educativos diferentes, com mais autonomia. Acha que, neste momento, temos projetos educativos diferentes em numero suficiente para ir provocando a mudança ou é preciso ainda mais diferença e mais autonomia?

Neste momento, as escolas estão todas a fervilhar com mudanças, que podem ser mudanças muitas restritas ou podem pôr em causa todos os invariantes da escola, como acontece em dois dos exemplos que estão no relatório. Esses casos que analisamos não os escolhemos por considerar que são os melhores do mundo ou que se tornem modelos, mas no sentido de ilustrar algumas mudanças e também tentar identificar o que funcionar. Por exemplo, temos três casos em que partimos dos resultados dos alunos no final do terceiro ciclo que foram superiores aquilo que seria de esperar tendo em conta a origem socioeconómica e sociocultural dos alunos. Então, fomos ver quais foram as mudanças introduzidas que podem permitir pensar que tiveram um efeito positivo. Outras foram escolhidas porque mudavam tudo e estavam a começar. É o caso das Novas Rotas, nos Açores, em que estão a começar uma experiencia inspirada na Escola da Ponte, mas em que podemos assistir a uma conjugação de vontades entre os pais e os professores, em que os pais tiveram um papel extraordinário até na construção física da escola. Noutro casos, procuramos ver como é que experiencias já antigas conseguiram sobreviver, porque as escolas são muito frágeis, qualquer mudança de direção ou da equipa de professores pode matar as experiências. Fomos ver, no fundo, dois eixos: quais são as mudanças e o processo da mudança.

O relatório não tem conclusões. Tem números, tem exemplos. que conclusão é que gostava que fosse possível tirar deste relatório?

Há ainda uma terceira parte que são textos de especialistas sobre várias áreas que nos parecem ser áreas de futuro, que têm de ser tidas em conta nesta reflexão sobre o futuro.

Entre as quais está a pré-primária ...

A pré-pré-primária, do zero aos três anos, que é uma área para a qual os principais partidos tinham propostas nestas últimas eleições para reforçar a dimensão educativa nas creches e nas amas.

Acha importante reforçar essa dimensão educativa ou é tempo de brincar?

Acho que é tempo de brincar, mas brincar não impede que se aprenda. Não nos damos conta que os miúdos dos zero aos três precisam também de uma estimulação cognitiva, como dantes também não ligávamos ao que os miúdos dos três aos cinco anos aprendiam e, no entanto, hoje sabemos que aprendem imenso e que um fator com imensas consequências sobre a escolaridade futura. Penso que do zero aos três também vai acontecer isso, ou seja reforçar a componente educativa dos meninos e dos bebés que estão em creches e em amas vai ter efeitos benéficos muito grandes.

Há um dado do relatório em relação a essas idades que é impressionante: passam cerca de dez horas semanais a mais nas creches ou nos jardins de infância do que a média da União Europeia. As crianças portuguesas passam praticamente 40 horas por semana ....

É quase uma semana de trabalho e do trabalho pesado, não é das 35 horas. Por um lado, acho que se deve reforçar a dimensão educativa, mas por outro lado tem de se ter muito cuidado para não estar a sacrificar o interesse da criança à produtividade e ao facto de os pais terem de trabalhar durante tantas horas. É mais um exemplo do que já disse: isto tem de ser um esforço conjunto, há coisas que ultrapassam o sistema educativo e essa questão das condições e dos horários de trabalho dos pais é, naturalmente, uma coisa que ultrapassa o sistema educativo, mas que tem consequências sobre o sistema educativo e sobre a educação das crianças.

Que consequências é que gostaria que este relatório tivesse?

Retiro da análise dos casos duas coisas: é possível ultrapassar condicionantes muitos poderosas como a pertença ao meio social, são escolas que não desistiram os miúdos, que acreditaram profundamente que todos os meninos podem aprender e podemos concluir que é possível que todos aprendam e todos avancem e que a escola está lá para isso. O nosso papel é consultivo, não temos um papel executivo. O que gostava era que era que, de certo modo, introduzíssemos ideias que levassem as pessoas a questionar-se sobre coisas que lhes parecem verdades absolutas. Toda a gente tem uma ideia da escola porque foi a escola que viveu ...

Mesmo toda esta discussão a que temos assistido sobre as retenções tem muito a ver com as ideias da escola que cada pessoa viveu...

Exatamente. É-lhes inconcebível uma outra escola e o que gostava que o relatório sobre o estado da educação fizesse, para além de mostrar como o país está em relação a outros países e em relação ao passado, que mostrasse também em relação ao futuro que é possível fazer diferente.