​Como se faz um terrorista em quatro passos
26-01-2016 - 21:18
 • Filipe d'Avillez , em Bruxelas

Os métodos de grupos como o autoproclamado Estado Islâmico passam pela desumanização não só das vítimas mas também dos terroristas. Mas as memórias de infância podem ser um importante estímulo para recuperar um jovem radicalizado, diz uma especialista francesa.

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Total isolamento em relação à sua vida anterior. É este o principal caminho seguido pelos recrutadores quando toca a radicalizar um jovem para ir combater pelo autoproclamado Estado Islâmico, segundo uma francesa especializada em desradicalização de militantes jihadistas.

Dounia Bouzar pertence ao Centro de Prevenção contra o Sectarismo Associado ao Islão que reclama ter conseguido desradicalizar pelo menos 300 jovens, estando a acompanhar neste momento mais de um milhar de casos e que é a aposta do Governo francês no combate a este fenómeno.

Num seminário sobre acções de contra-terrorismo ao nível da União Europeia, promovido pelo Parlamento Europeu, em Bruxelas, Bouzar explicou esta terça-feira que a radicalização se faz em quatro passos essenciais, que visam o isolamento total do alvo em relação à sua vida anterior e que permitem às entidades oficiais distinguir entre a radicalização e a simples devoção religiosa.

“O primeiro passo é a ruptura com anteriores amigos. Todos os radicalizados cortam relações com o grupo anterior. Depois vem a ruptura com o ensino. Claro que nem todos os que abandonam a escola são radicais, mas todos os radicais rompem com escolaridade oficial.”

De seguida vem o corte com todas as actividades extracurriculares e de lazer. À medida que o alvo começa a convencer-se que faz parte de uma minoria de iluminados, escolhidos por Deus para viver o verdadeiro Islão ao passo que todos os que o rodeiam vivem adormecidos e influenciados pela sociedade, acredita também que a vivência sincera do Islão exige que deixe de praticar ou gozar as actividades que até então o divertiam.

O passo final é a ruptura com a família. “Para além de algumas famílias radicalizadas por inteiro, não conheço qualquer radical que obedeça aos seus pais. É necessário cortar totalmente com os laços parentais. Os novos irmãos e irmãs são mais importantes que os biológicos”, explica Bouzar.

Mas é precisamente pelos laços familiares, que são os mais antigos e por isso os mais resistentes a essa ruptura, que é possível começar o processo de desradicalização, explica a especialista. Já se sabe que os grupos terroristas apostam na desumanização das suas vítimas, tornando assim mais fácil cometer actos de violência contra civis inocentes, mas no caso de grupos como o Estado Islâmico o processo passa também pela desumanização dos terroristas, patente na ruptura de relações e que se consome, nos casos dos que conseguem chegar ao território controlado pelo grupo, na destruição de passaportes e outros documentos que os identifiquem como pertencentes a um Estado.

Por isso, Bouzar critica qualquer medida tomada pelos países de origem que possa consolidar essa ideia. “A desradicalização passa precisamente por tentar rehumanizar as pessoas. Temos de apostar em fortalecer os laços com os países de origem e grupos sociais, e não o contrário.”

A força do subconsciente

É precisamente nesse processo de rehumanização que entram os tais laços familiares anteriormente referidos. “O Estado Islâmico pode destruir o coração ou a consciência, mas não o subconsciente. As memórias da infância trazem uma grande carga emocional. Essas memórias levam-nos de volta aos sentimentos de infância e aí pode-se mobilizar novamente o indivíduo, é um reacordar. Pode ser passageiro, mas é o suficiente”, diz, para abrir uma brecha na utopia em que o jovem radicalizado passou a acreditar.

“Depois de se passar essas defesas, pode-se avançar para o segundo passo, que é fazer o luto da utopia em que acreditou, para poder trazê-lo de volta ao mundo verdadeiro”, diz Dounia Bouzar.

Um dos factores mais complicados é que uma pessoa radicalizada jamais reconhecerá estar a precisar de ajuda. Os casos que a organização de Bouzar segue são quase sempre denunciados por familiares preocupados e normalmente são estes que os conseguem trazer para uma primeira reunião. Aí, explica, a metodologia é parecida com a de grupos como os Alcoólicos Anónimos, mas com uma encenação cuidadosa, onde a presença de um ex-radical é essencial.

“Este trabalho apenas pode ser feito por ex-radicais que tenham sido reintegrados. São eles que podem levar o radicalizado a perceber que aquilo que pensava ser uma missão divina, afinal não é mais que a projecção dos seus problemas pessoais. Eles são a prova de que a corrente de vida humana é mais forte que a morte.”

Ao contrário do que se possa pensar, a pessoa desradicalizada não está lá para criticar a utopia em que o ainda radicalizado acredita. Pelo contrário. “Quando a pessoa chega já há um desradicalizado a falar, a dizer que tem saudades da utopia. A pessoa que está a falar serve de espelho”, diz Bouzar.

Quase sempre o alvo do processo acaba por ficar para assistir à sessão unicamente porque a linguagem que está a ouvir do outro lado não é aquela que esperava, de simples negação daquilo em que acredita. Com o tempo, acaba por ceder, explica a especialista. “Quando deixam de ver coerência entre o mito em que acreditaram e a realidade, abre-se uma brecha que permite o regresso à realidade.”

Chegado a esta fase, a vigilância continua a ser fundamental, uma vez que a pessoa continuará a sentir uma forte atracção pelo sistema de pensamento e a ideologia que fornecia todas as respostas às suas crises existenciais. A reintegração na vida familiar, escolar, social e de lazer é crucial mas é necessário continuar atento a potenciais recaídas.

Dounia Bouzar é uma antropóloga, de origem marroquina e argelina da parte do pai, com especialização em assuntos muçulmanos no contexto do secularismo francês. Desde 2006 que se dedica à questão da radicalização. Chegou a fazer parte do Conselho Muçulmano de França e em 2014 fundou o CPDSI. Foi uma das oradoras convidadas pelo Parlamento Europeu para falar a um grupo de jornalistas de vários países, no contexto do seminário Terrorismo: A Resposta da UE, que decorre esta terça e quarta-feira em Bruxelas.