A luta contra o coronavírus também é uma guerra de patentes nas vacinas
23-03-2020 - 21:25
 • Marina Pimentel

Vítor Palmela Fidalgo, especialista em propriedade intelectual, disse à Renascença que a vacina contra o novo coronavírus é uma arma com uma dupla eficácia para Donald Trump.

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É a solução por que todos esperam. Só a descoberta de uma vacina poderá por um fim à crise que estamos a atravessar. A China, os Estados Unidos e a Alemanha são os países mais avançados no processo. É uma corrida contra o tempo. Mas em que está em causa muito mais do que a saúde pública. Há muitos milhares de milhões em jogo. E pelos menos para um dos competidores, vale tudo.

O Presidente norte-americano, Donald Trump, ofereceu altas quantias em dinheiro à empresa alemã CureVac para que transferisse a sua sede para os Estados Unidos e aceitasse desenvolver a vacina contra coronavírus exclusivamente para americanos.

Foi igualmente noticiado que uma colaboradora da empresa CureVac, que era cidadã norte-americana, foi contratada, em tempo recorde, pela Casa Branca. A Alemanha já veio dizer que nunca dará o exclusivo da patente a nenhum país e que a mesma deverá ser usada com um fim público.

Quem chegar primeiro à vacina para a Covid-19 poderá patenteá-la e ter a exploração exclusiva, em cada país. Por isso, esta questão é tão importante para Donald Trump.

Vítor Palmela Fidalgo, especialista em propriedade intelectual, explica em declarações à Renascença que a vacina contra o novo coronavírus é uma arma com uma dupla eficácia para Donald Trump.

“É uma arma política, porque as invenções, ou, de um modo mais geral, a tecnologia, são muitas vezes usadas para impor estratégias comerciais, como tarifas aduaneiras, ou um determinado investimento estrangeiro”, afirma Vitor Palmela Fidalgo.

O professor na Faculdade de Direito de Lisboa defende que “Donald Trump tem recorrido constantemente a chantagens desse tipo, algumas delas executadas, como a imposição de tarifas a produtos chineses e europeus”.

Lembra que “no caso da Europa, Donald Trump chegou a dizer que a forma de ter a Europa de joelhos seria colocar taxas alfandegárias à exportação de carros para os Estados Unidos”.

Chegar em primeiro lugar à meta, na corrida pela vacina, dará também relevância comercial aos americanos, tanto mais importante quanto vamos assistir à devastação da economia à escala global. E sobretudo poderá dar muito dinheiro aos Estados Unidos, por causa do sistema de patentes.

EUA dominam sistema de propriedade intelectual


Vítor Palmela Fidalgo explica que “os Estados Unidos são o país que mais beneficia, no mundo, do sistema de propriedade intelectual. A transação de obras musicais, cinematográficas ou produtos farmacêuticos, geram milhares de milhões de euros à economia americana.”

As patentes são direitos de propriedade intelectual, no caso da vacina, trata-se de propriedade industrial, que têm como objeto invenções de caráter técnico, que sejam verdadeiramente novas e inovadoras.

O sistema de patentes, diz Vítor Palmela Fidalgo, “é como se fosse um contrato social entre o Estado e o inventor. Em troca de a informação ser tornada pública e também pelo esforço da investigação, o Estado atribui ao inventor um monopólio de exploração de 20 anos. Quem chegar primeiro à vacina para a Covid-19, poderá patenteá-la e ter a exploração exclusiva em cada país”.

O que pode Portugal fazer

Se o Estado português for confrontando com um problema de acesso ao medicamento da Covid-19, o que poderá fazer?

Perante a eventual “instrumentalização do sistema de patentes”, seja pela imposição de determinadas políticas comerciais seja por custos excessivos no acesso ao medicamento, o especialista em propriedade industrial defende que “o Estado português tem meios que permitem fazer face a esta circunstância, através das chamadas licenças obrigatórias ou compulsórias”.

As licenças obrigatórias permitem “quebrar patentes”, ou seja, atribuir licenças de utilização da invenção patenteada, sem o consentimento do seu proprietário.

Vítor Palmela Fidalgo diz que o Código de Propriedade Industrial refere, expressamente, a possibilidade de atribuir licenças obrigatórias por razões de saúde pública.

Esta possibilidade nunca foi utilizada em Portugal, mas é possível. O titular da patente receberá um “royalty” razoável, que terá sempre um custo mais baixo do que aquele que é normalmente pedido pelo proprietário”.

O jurista adverte, no entanto, que “a concessão de uma licença obrigatória sobre uma patente poderá gerar a retaliação económica do Estado onde está sedeada a empresa titular da patente”. De qualquer forma, a simples existência deste mecanismo, permite, muitas vezes, uma negociação mais ajustada no acesso aos medicamentos patenteados.

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