Estou na telefonia
21-12-2018 - 06:36

O Natal é o tempo da gratidão. É tempo de agradecer à Renascença. Agradeço pela companhia ao longo de quase quarenta anos de história familiar. Agradeço pela confiança.

É uma das minhas memórias mais antigas. Se a consciência for uma catedral, esta memória é um dos arcos ogivais: às seis da manhã, a minha mãe leva-me embrulhado num cobertor e deixava-me na casa da minha madrinha. Ela seguia depois para a fábrica a pé, de autocarro ou de boleia; ia até Pirescoxe e descia até à zona da Covina onde trabalhava numa fábrica de componentes de telefone. No cheiro químico e no zumbido mecânico, a minha zona era uma pequena China. Durante o curto caminho, lembro-me do balouçar confuso do colo, porque o pavimento era ainda de terra e pedra, a minha mãe tinha de se desviar da lama e das poças; lembro-me do frio no escuro, das pequenas farripas de lã que decoravam os quatro cantos daquele cobertor provavelmente feito pela minha avó, lembro-me da luz que vinha da casa da tia ao longe, a única luz visível num bairro ainda clandestino com um ou dois postes de iluminação. Eu ficava embrulhado no quarto dos meus primos, um já trabalhava. Era-se homem muito cedo naquele tempo. Pouco depois, a tia também saía para apanhar o autocarro a caminho de Lisboa onde servia há décadas na mesma casa. A operária e a criada.

Enquanto a tia, o tio, os primos e os avós comiam e preparavam marmitas, só ouvia um som: a Rádio Renascença, que era derramada na casa a partir do rádio da cozinha. Às vezes, havia stereo quando alguém deixava ligado o pequeno rádio da casa de banho. Não me lembro de locutores nem de programas, mas sei que era a Renascença. Numa família de alentejanos silenciosos, a rádio era o único som humano, o resto era ruído inerte, o choque das chávenas nos pires, o pão a saltar na torradeira, o pedal da máquina de costura da avó já a trabalhar no anexo do quintal. Aquele som, o da rádio, unia-nos, ligava-nos, ligava-nos porque comentávamos o que ouvíamos com olhares de repulsa ou apoio, ligava-nos ao país que estava lá fora, um país mergulhado numa crise e à procura da esperança europeia. Pouco depois, toda a gente saía. Só ficava a avó e a Renascença. Quando acabava de coser as saias das vizinhas, a avó fazia lume no fogão a lenha já a pensar no almoço e punha lenha no forno onde fazíamos pão à moda antiga (que hoje se vende nas padarias finas de Lisboa).

Daqui a quarenta anos, quando as minhas filhas fizerem um exercício de memória semelhante, a Rádio Renascença voltará a estar presente, e não necessariamente por se lembrarem que o pai em tempos falou ali. Quando elas acordam, o rádio da cozinha já está ligado. Às vezes, não ouvimos aquilo que a Carla, o Miguel, o Renato, o Pedro, a Sandra, o Paulo, o Carlos, o Rui, a Fátima, a Anabela, o João, entre outros, estão a dizer. Àquela hora, no meio das birras, não é isso que interessa; o que interessa é que a rádio é a lareira possível, faz companhia. À tarde, quando chegamos da escola, por volta das 18h, ligo o rádio. Os banhos, o vestir o pijama, as conversas, o meu tosto cozinhar, o dar o jantar, os trabalhos, os desabafos, enfim, toda a relação entre as minhas filhas e o seu pai é feito com a Renascença ao fundo, qual lareira hertziana. Elas até dizem a brincar que o pai “vê” o Benfica através da Bola Branca.

O Natal é o tempo da gratidão. É tempo de agradecer à Renascença. Agradeço pela companhia ao longo de quase quarenta anos de história familiar. Agradeço pela confiança. Quando o Pedro e a Graça me convidaram para fazer comentário em directo, confesso que tremi. Sou um tímido radical. Às vezes, dizem-me que escrevo como se estivesse a falar. É normal: escrevo o que não consigo dizer; escrever é uma forma de vencer a minha natureza. Estar em directo custa-me, fico sem ar, é como entrar em apneia agarrado a uma corda que me leva para o fundo do mar. Além disso, tenho a cabeça treinada para escrever, que é o exacto oposto de falar. Aceitei, porque era um desafio, porque sou profissional. Mas, sim, estava com medo, estava com receio de não conseguir fazer apneia duas vezes por semana. Julgo, porém, que as coisas têm corrido bem. O meu medo era talvez infundado. Desde o início, nunca senti a minha timidez no meio de todas as pessoas que encontro aqui logo na segunda-feira de manhã. Senti-me sempre à-vontade, o que é raro. Devo por isso um obrigado especial à Carla Rocha, ao Miguel Coelho e ao Jacinto Lucas Pires, as três pessoas que partilham comigo o aquário, que, afinal de contas, não exige apneia. Ou, se calhar, tenho guelras; guelras talvez criadas naqueles anos em que, ainda embrulhado num cobertor áspero, ouvia a Rádio Renascença na telefonia da minha tia. Era assim que se dizia: telefonia.